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Pés Rapados


Aníbal é um velho de oitenta anos que vive numa casa de madeira que ele próprio ajudou a erguer. O local onde vive é o mais puro motivo para que qualquer um possa viver uma vida de sonho, um largo rio com águas límpidas que rasga a terra da qual brotam os mais saborosos produtos, todos dignos de marca biológica, há paz e sossego nos caminhos, as gentes entendem-se e confraternizam. No entanto, nem sempre o Aníbal vivera ali. Enquanto jovem na casa dos vinte, tinha penetrado no mundo da chamada civilização. Tinha absorvido algumas manias civilizacionais, entre elas, usar uma determinada espécie de sapatos e protestar. Protestava quase todos os dias. Chamavam-lhe o pé chato.
Aos sábados, toda a comunidade se juntava no terraço da D. Elisete e cada um trazia o que tinha, tudo produtos de alta qualidade nos cestos mais simplórios e daquele sinal de união efetiva resultava o mais rico manjar e convívio. À noite, observava-se as estrelas e dormia-se sem um único ruído e sem uma única luz acesa a não ser a  das estrelas. Uma das características desta comunidade feliz era andar descalça. Os caminhos eram em terra batida e quer o pó do verão quer a lama do inverno não atrapalhavam a caminhada. Tudo estava naturalmente limpo e a casa era a extensão das ruas. Sacudiam os pés, uma limpadela apressada e, quando chegavam à cama, já estava tudo resolvido, não havia vestígios de terra. Estavam os pés rapados por natureza. Nunca aquela gente se queixou de calosidades ou fungos diversos nem sequer das famosas frieiras nem dos incomodativos joanetes.
Aos domingos, ia-se à missa. O local onde se celebrava a Divina presença de Deus nas suas vidas era um casebre tão tosco como as suas casas, mas limpo até à exaustão e devidamente enfeitado com pequenas flores silvestres. O altar era de fazer inveja ao povoado mais próximo! E ali se reuniam todos, vestiam as mais belas vestimentas que tinham lá por casa e, todos descalços, levantavam as vozes aos Céus, em agradecimento por aquele recanto de paraíso onde viviam em comunhão efetiva. O único que protestava era o velho Aníbal, mas, como já era presença idolatrada, os protestos sabiam a mel e a autoridade.
Um dia, por volta das duas da tarde, quando reinava na aldeia o mais implacável silêncio pela religiosa hora da sesta, onde apenas as cigarras tinham direito a manifestar o seu descontentamento, apareceu um indivíduo. Sujeito magro, barbudo, cabelo apanhado em rabo de cavalo, mochila às costas, direito e musculado, fazia-se acompanhar de uma bicicleta e, o mais curioso pormenor, nos pés calçava umas sapatilhas. O jovem foi bater à porta do senhor Ernesto. Este acordou do seu sono reparador e, atónito, olhou para aquele sujeito mal vestido e mal calçado e perguntou-lhe o que queria. Apercebeu-se que era um  viajante que pedia um dia de descanso. Foi bem acolhido, depois de ouvida a comunidade. O Aníbal era o único que não o via com bons pés, temeu, de imediato, a concorrência. Em terra de pés rapados, quem tem sapato é rei e ainda havia o Diabo de tecê-las e ficar sem o seu lugar de destaque. O indivíduo ali ficou durante dois dias e acompanhou todas as atividades rotineiras daquela gente, ajudando no que podia e sabia. No último dia, dia do Senhor, foi à missa como todos faziam. À porta da igreja estavam todos entrando de forma ordeira, sacudindo o pó da estrada, limpadela rápida de pés. O senhor Aníbal, protestando, raspava os seus sapatecos num pedaço de ferro colocado à porta da igreja, estrategicamente e só para uso próprio, assinalando a diferença. O sujeito visitante, por uma questão de respeito, descalçou-se, revelando o seu pé de atleta. As sapatilhas foram deixadas à porta. As cerimónias começaram e houve alguém que, por impulso, veio até ao adro, apreciar as sapatilhas e, por impulso, colocou-as nos pés. Eram tão confortáveis!. Com aquela sensação de conforto nunca experimentado, assistiu aos cânticos do coro religioso com uma lágrima ao canto do olho e espalhou a notícia. Aquelas sapatilhas eram um milagre de Deus! O viajante, em maré de despedida, ouviu, com interesse, o desejo que, sem querer, provocara e sentiu que não podia desperdiçar esta oportunidade. O impulso virara interesse e viu ali uma excelente oportunidade de negócio. Prometeu voltar com exemplares de todos os tamanhos e cores. Durante dias, o Aníbal andava insuportável. Como era possível um simples pé de atleta ter dado a volta a tantos pés rapados?!! E cismava! Começou por pedir uma reunião comunitária extraordinária e expor o seu ponto de vista. Alguns ficaram conscientes de que uma mudança de hábitos, desta natureza, iria pôr em causa a tradição daquela aldeia. Outros, porém, eram de opinião que urgia uma mudança e este era o momento certo. Alguns começaram, repentinamente, a queixar-se de malformações ósseas e calosidades várias, feridas nunca reveladas. Deixou de haver paz naquele recanto idílico. Passado um tempo, lá chegou o viajante com um conjunto atraente de sapatilhas das mais variadas formas e cores. Discutia-se tamanhos, cores e preços. Todos experimentaram com entusiasmo, exceto o Aníbal. Seguiram-se dias e dias de protesto, invejas e desavenças. Todos tinham experimentado a força do poder.
No dia seguinte, pelas cinco da manhã, lá foi o Aníbal de cajata em punho, pequeno saco ao tiracolo, os seus sapatecos nos pés chatos. Abandonara aquele lugar onde o seu protesto já não fazia sentido.

 Mónica Costa


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