E a noite cai em menos de nada,
límpida, mas sem estrelas no céu. Apenas vejo a lua, cheia, grande, brilhante,
deslumbrante. Gosto muito da lua porque podemos olhar directamente para ela e,
para mim, sempre simbolizou um elo de aproximação entre mim e quem estava
longe, pois podíamos ambos olhar para a lua em simultâneo e estávamos a ver o
mesmo, apesar do afastamento geográfico. É uma imagem muito reconfortante e
romântica. A lua é feminina, como diz o meu “ex-namorado”.
Quase que não há outros automóveis a
circular no meu sentido, nem no sentido contrário. Subitamente começam a
aparecer relâmpagos no negro do céu, muitos e sucessivos. Não resisto; encosto
na berma da auto-estrada, ignorando conscientemente o perigo deste acto, mas
tenho de apreciar este espectáculo! Abro a porta, saio do carro, encosto-me e
fico a olhar o céu por uns bons minutos, a pensar na energia carregada nos
raios que, talvez um dia, a ciência a saiba aproveitar, como tentou fazer, mas
sem sucesso, o Professor Pardal e o seu assistente Lampadinha, personagens de
banda desenhada da minha infância. Finda esta bela exibição da natureza retomo
a viagem, saindo para a estrada nacional uns quilómetros mais à frente.
Assim que passo a portagem, a noite
dá lugar ao dia sem qualquer aviso prévio, sem um belo amanhecer, sem as suas
vibrantes cores. O sol brilha tão intensamente que me obriga a procurar os
óculos escuros. O calor começa a apertar e o termómetro sobe até aos 41º C,
como se estivesse em pleno verão. Não me importo nada, pois eu adoro o calor,
mas tenho de ligar o ar condicionado do carro e fechar a janela. O mais curioso
é que durante toda a viagem me sinto sempre confortável com a roupa que trago
vestida, escolhida logo pela manhã em casa.
Nesta estrada vou sempre atenta aos
carros com que me cruzo, se me fazem sinais de luzes a alertar para um provável
radar escondido entre a vegetação da berma da estrada, pois vou sempre com
alguma pressa para chegar a Santa Maria de Além-Mar, o que me faz conduzir a
uma velocidade acima do permitido. E, quando encontro o tal tripé, pequenino,
escondidinho, só me ocorre voltar atrás e abalroá-lo “acidentalmente”, mas
depois caio na razão e sei que sou eu quem está a pensar mal...
De volta aos meus pensamentos, penso
na rotina diária dos meus actos, da minha profissão... a rotina mata!
Contudo, numa outra visão do
assunto, o meu amigo cirurgião cardio-toráxico Pedro Riachos, contesta que a
rotina lhe dá tranquilidade e segurança, sobretudo no trabalho, pois os riscos
são minimizados, tudo corre melhor e com mais celeridade, cumprindo os
protocolos que ditam a tal rotina.
Mas eu não gosto da rotina e cada
vez mais ando desconfortável com a minha profissão, com o que faço todos os
dias. Muitas vezes me questiono “como vou continuar a fazer isto o resto da
minha vida?”. Não fui talhada para as funções que exerço e, quando não se gosta
do que se faz, é preciso o dobro do esforço para se realizar o mesmo trabalho.
Ouvi uma vez a seguinte frase “não há nada pior do que ter a profissão
trocada”, mas pior ainda é não fazer a mais pálida ideia em que é que eu me
realizaria.
Numa ocasião abordei o assunto com
uma psicóloga na expectativa de fazer um teste de orientação vocacional.
Comecei a medo a tocar no tema, pois eu já estava com cerca de vinte anos a
exercer a profissão para a qual me formei, não fosse ela pensar que eu estava
doida, mas a Margarida tranquilizou-me ao dizer que estas dúvidas e
inseguranças que eu tinha eram comuns a muitas pessoas, e eu fiquei mais
confiante em me expor. Mas logo, logo, ela arrasou-me, pois revelou que para
além de um teste de orientação vocacional, também teria de fazer um teste de
aptidão, pois poderia ter vocação, mas não ter aptidão e, ainda, um teste de
personalidade com psicanálise e regressão... Aí eu arrepiei caminho e decidi
não continuar à procura do que não sabia sequer o que estava a procurar.
Procuro, assim, levar da melhor forma os meus dias, lamentando as minhas
escolhas e a minha amargura, por umas vezes e, por outras, ficando contente com
a remuneração que a minha profissão me proporciona. O dinheiro não é tudo nem
traz felicidade, diz o velho cliché, mas facilita muito as coisas... Quando eu
era criança o meu pai dizia que eu estudava nos intervalos da brincadeira.
Agora eu considero que trabalho nos intervalos das coisas boas da vida; o
trabalho é um meio para a subsistência; não é um fim para a existência...
Chego finalmente ao meu destino.
Estaciono o carro no parque, desligo o motor, abro a porta e oiço o silêncio de
Santa Maria de Além-Mar, que me sabe tão bem. Entro, a Constantina
cumprimenta-me, pergunta-me se fiz boa viagem e de seguida diz “Doutora, vamos
começar; a agenda está cheia!”. Vou ver quem está para ser atendido, começo a
ler os nomes que constam na agenda que são, por ordem de aparição:
O meu “ex-namorado”
Zé Pato
João, do Porto
Gil
Professor Silva Leite
Professor Pardal e Lampadinha
Pedro Riachos
Margarida
Esboço um sorriso de secreta
satisfação e digo “Muito bem, Constatina, vamos, então, começar!”
Janeiro
de 2015
Maria
Liberdade
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