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Crónicas de Uma Viagem 3

            E a noite cai em menos de nada, límpida, mas sem estrelas no céu. Apenas vejo a lua, cheia, grande, brilhante, deslumbrante. Gosto muito da lua porque podemos olhar directamente para ela e, para mim, sempre simbolizou um elo de aproximação entre mim e quem estava longe, pois podíamos ambos olhar para a lua em simultâneo e estávamos a ver o mesmo, apesar do afastamento geográfico. É uma imagem muito reconfortante e romântica. A lua é feminina, como diz o meu “ex-namorado”.
            Quase que não há outros automóveis a circular no meu sentido, nem no sentido contrário. Subitamente começam a aparecer relâmpagos no negro do céu, muitos e sucessivos. Não resisto; encosto na berma da auto-estrada, ignorando conscientemente o perigo deste acto, mas tenho de apreciar este espectáculo! Abro a porta, saio do carro, encosto-me e fico a olhar o céu por uns bons minutos, a pensar na energia carregada nos raios que, talvez um dia, a ciência a saiba aproveitar, como tentou fazer, mas sem sucesso, o Professor Pardal e o seu assistente Lampadinha, personagens de banda desenhada da minha infância. Finda esta bela exibição da natureza retomo a viagem, saindo para a estrada nacional uns quilómetros mais à frente.

            Assim que passo a portagem, a noite dá lugar ao dia sem qualquer aviso prévio, sem um belo amanhecer, sem as suas vibrantes cores. O sol brilha tão intensamente que me obriga a procurar os óculos escuros. O calor começa a apertar e o termómetro sobe até aos 41º C, como se estivesse em pleno verão. Não me importo nada, pois eu adoro o calor, mas tenho de ligar o ar condicionado do carro e fechar a janela. O mais curioso é que durante toda a viagem me sinto sempre confortável com a roupa que trago vestida, escolhida logo pela manhã em casa.

            Nesta estrada vou sempre atenta aos carros com que me cruzo, se me fazem sinais de luzes a alertar para um provável radar escondido entre a vegetação da berma da estrada, pois vou sempre com alguma pressa para chegar a Santa Maria de Além-Mar, o que me faz conduzir a uma velocidade acima do permitido. E, quando encontro o tal tripé, pequenino, escondidinho, só me ocorre voltar atrás e abalroá-lo “acidentalmente”, mas depois caio na razão e sei que sou eu quem está a pensar mal...

            De volta aos meus pensamentos, penso na rotina diária dos meus actos, da minha profissão... a rotina mata!
            Contudo, numa outra visão do assunto, o meu amigo cirurgião cardio-toráxico Pedro Riachos, contesta que a rotina lhe dá tranquilidade e segurança, sobretudo no trabalho, pois os riscos são minimizados, tudo corre melhor e com mais celeridade, cumprindo os protocolos que ditam a tal rotina.
            Mas eu não gosto da rotina e cada vez mais ando desconfortável com a minha profissão, com o que faço todos os dias. Muitas vezes me questiono “como vou continuar a fazer isto o resto da minha vida?”. Não fui talhada para as funções que exerço e, quando não se gosta do que se faz, é preciso o dobro do esforço para se realizar o mesmo trabalho. Ouvi uma vez a seguinte frase “não há nada pior do que ter a profissão trocada”, mas pior ainda é não fazer a mais pálida ideia em que é que eu me realizaria.
            Numa ocasião abordei o assunto com uma psicóloga na expectativa de fazer um teste de orientação vocacional. Comecei a medo a tocar no tema, pois eu já estava com cerca de vinte anos a exercer a profissão para a qual me formei, não fosse ela pensar que eu estava doida, mas a Margarida tranquilizou-me ao dizer que estas dúvidas e inseguranças que eu tinha eram comuns a muitas pessoas, e eu fiquei mais confiante em me expor. Mas logo, logo, ela arrasou-me, pois revelou que para além de um teste de orientação vocacional, também teria de fazer um teste de aptidão, pois poderia ter vocação, mas não ter aptidão e, ainda, um teste de personalidade com psicanálise e regressão... Aí eu arrepiei caminho e decidi não continuar à procura do que não sabia sequer o que estava a procurar. Procuro, assim, levar da melhor forma os meus dias, lamentando as minhas escolhas e a minha amargura, por umas vezes e, por outras, ficando contente com a remuneração que a minha profissão me proporciona. O dinheiro não é tudo nem traz felicidade, diz o velho cliché, mas facilita muito as coisas... Quando eu era criança o meu pai dizia que eu estudava nos intervalos da brincadeira. Agora eu considero que trabalho nos intervalos das coisas boas da vida; o trabalho é um meio para a subsistência; não é um fim para a existência...

            Chego finalmente ao meu destino. Estaciono o carro no parque, desligo o motor, abro a porta e oiço o silêncio de Santa Maria de Além-Mar, que me sabe tão bem. Entro, a Constantina cumprimenta-me, pergunta-me se fiz boa viagem e de seguida diz “Doutora, vamos começar; a agenda está cheia!”. Vou ver quem está para ser atendido, começo a ler os nomes que constam na agenda que são, por ordem de aparição:

 O meu “ex-namorado”
 Zé Pato
 João, do Porto
 Gil
 Professor Silva Leite
 Professor Pardal e Lampadinha
 Pedro Riachos
 Margarida

            Esboço um sorriso de secreta satisfação e digo “Muito bem, Constatina, vamos, então, começar!”


                                                                       Janeiro de 2015


                                                                       Maria Liberdade


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