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A mostrar mensagens de outubro, 2021

e fica o Homem como que atravessado por um dardo…

  Iniciado o campo e na terra fervendo estão os homens assistindo a tudo impávidos A vê-lo correr, a fogo lento, estradas negras em escuro fundo Um caminho que engole casas, um tremor oculto Um silêncio que devora e que desarma E ali está ele cuspindo, vomitando com toda a magnificência! Começou a dar sinais de erupção e até ouvi dizer mil terramotos em cinco dias Tanto peso e tanta força escorrendo!   A natureza a lembrar-nos como somos pequenos e fica o Homem como que atravessado por um dardo…   (fotografia de Alfonso Escalero)  

os cinco sentidos

com tal zelo assegurei quatro          dos cinco em reserva embrulhados em papel de jornal      à espera da hora da sorte  o que era o mesmo que dizer           que assim resguardados fossem ao menos descansando      aos bocados e a tomar fôlego para quando         tudo acabasse em bem fiquei apenas e sempre com as mãos de fora        não paradas        abertas em êxtase mas daqueles quatro em reserva      houve três         já de si mais impulsivos que deram ar da sua graça e            para que vos quero                    ouvidos!  juntaram-se-lhe            em perfeita comunhão              a língua e o nariz                queriam lá eles a espera              de um final feliz! fiquei com apenas um de sobra                      o melhor e o mais suspeito de todos o único que não deixa mentir                               os olhos! e assim continuam na reserva                brilhando sem que ninguém se aperceba

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Quem diz que coisa boa não acontece em tempos desgraçados está redondamente enganado Claro que coisas boas acontecem em tempos devastados!

Está o terreno molhado. Estão as folhas pesadas.

Está o terreno molhado. Estão as folhas pesadas. Sem querer fazer-me anunciar, fica aqui devidamente registada a ideia fantástica de que me sinto uma maravilha! Pelo menos, foi assim que me ouvi hoje de manhã, quando a árvore mais alta do jardim se virou para mim. Estava ela tão altaneira, mas tão perto… Endireitou o tronco e agitou-se, soltando algumas das suas folhas pesadas, e disse: - Começa a ser tempo de aceitares a tua condição e começares a dar ordens. Talvez tenhas começado devagarinho e de forma pouco audível, mas já chega de tanta insurreição tranquila e, com heroico desvelo, trata de começar a cintilar e a ver distante           o mais perto.

É preciso que eu diminua

Há uma evidência implacável na parede do nosso quarto de infância quatro ------- traços ------- irrefutáveis ------- estupendos assim ---------- bem delineados  na vertical e na perspetiva do céu Linhas que foram crescendo parede acima, ovo de tanta coisa,  registos que testemunham como já fomos grandes em pequenos.

são os fardos

são os fardos, fardos pesados são os fardos daqueles que se não sentem são fardos e mais fardos dos muitos vazios que construímos ano após ano pacientemente são os instantes mais do que tardios são já as palavras fardos que não saem são os dias que queres que já não nascem é o teu rosto que é fardo e fardo pesado mas ainda o brilho dos meus olhos no meio deste fogo cruzado (imagem - Offret (1986) de Andrei Tarkovsky)

e por cada ruína uma oportunidade

 O que nos vale, a nós, humanos (esta espécie de seres cosidos a três raivas) é que o tempo tudo perfura e revela e ainda que: a janela mais bela cerrada acabe quebrada a escadaria impecável se cubra de verde lodo e as que já foram festivas paredes acabem como palcos de prodigiosos silêncios A natureza sabe o que faz e, paciente, aguarda o curso de cada hora e por cada ruína uma oportunidade: é assim que a raíz se expande sob o pátio quebrado e assim se desdobra o feto em assumida folha pela ruína acima e assim degrau a degrau trepa a hera invadindo afoita e em grande festa as janelas quebradas E assim uma flor danada insiste neste varandim destruído.

etiqueta fica bem em qualquer ocasião

Confessou que não debica pequenas goladas de chá a horas certas Nem tem jeito para pegar na chícara de dedinho em riste Confessou antes a garra com que agarra a malga a duas mãos e mata a sede muito antes das dezassete Ela sempre soube que etiqueta fica bem em qualquer ocasião mas é a forma infalível que desgosta de entrincheirar qualquer um… e acontece que ela não foi feita para guerras nem trincheiras e que depressa assalta o campo inimigo sem necessitar sequer de bandeiras (que é crime capital entre os briosos) Confessou finalmente que consegue viver confortavelmente na companhia afável de 999 diabos, se preciso.

confio neste azul

 Confio neste azul um azul do género mar em início de dia o mar das rebentações que se atiram à procura da luz um azul água que acredita desmesuradamente no que pode vir a ser um azul céu que é lugar que já conheço entendo a sua linguagem que é a minha voz aplacada nas entranhas e que cresce em delicadeza extrema ano após ano Confio neste azul Sei de cor a sua e minha natureza terna cumpre-me pugnar agora pela sua própria paz