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A mostrar mensagens de 2018

Acredita!

Há uma certa melancolia, qualquer coisa de despedida… quando finda um ano! O sentimento da não duração. Uma espécie de resignação, um abatimento, um balanço mal engendrado do ter e haver, uma certa subtração…Há um abotoar do casaco e um enfiar de mãos nos bolsos. Há mesmo quem procure, como único refúgio, os ditames de um horóscopo favorável que transforme o ano seguinte numa possível segunda oportunidade… algo a dizer-nos «falhaste! tenta outra vez» e é como se adquiríssemos pós mágicos que transformam a vida num ciclo recomeçado, mas sem medo. Séneca dizia «Onde não há esperança, não há medo.». Portanto, tenhamos medo!  Há uma certa alegria, qualquer coisa de mágico… quando se inicia um novo ano! Uma esperança na mudança para que nos aperfeiçoemos, coragem para assumir o inesperado, o inédito, a surpresa, o novo olhar sobre as coisas e as pessoas. Só a capacidade de pensarmos que aquilo que aí vem vai ser muito melhor do que aquilo que já passou, é vida! Sermos capazes de uma viag

homenagem ao texto de jeito que nunca chegou a nascer

Ainda vais a tempo… (desafia o corvo) Pega nesta caneta e escreve sem anestesista! Escreve um texto de jeito por uma vez na vida Exibe-te em jeitos de malabarista Transforma o meu presságio em golpe de sorte, em jogo de palavras, em ás de ouros. Se conseguires, tiro-te o chapéu! Mónica Costa (imagem de Soisick Meister)

Nascimento!

Eram três, três estrelas e meia numa manhã clareada e sem fim, pautada pelo ritmo da dor que ora chegava ora abalava. Depressa se transformaram em dez, dez nuvens numa manhã que rasgava a janela. Eu estava na cozinha só à espera. Eram cinco, cinco minutos, de cinco em cinco minutos. A ansiedade estalava as paredes silenciosas da casa. Eram vinte e quatro, vinte e quatro dias da manhã do dia vinte e quatro! Pesava a cabeça de uma criança que parecia puxar-me para o chão, os rins pareciam inchar. Urgia uma partida, mas controlei-me: é que o amor de cá de fora suplantava a dor que vinha de dentro. Transpirava a calma do mundo… inspirava, retinha e expirava levemente. Parti! De repente, tudo se apressou. Uma porta, uma porta se fechava. A dor intensificava-se, as águas brotaram, tudo se abria à sua chegada. E eu passeava por entre belas paisagens com montras de brinquedos – tudo cheirando a natal. De quando em vez, colava-me à parede para aguentar a dor. Exausta, deitei-me. Era uma vez, m

Natal 4

Abre, abre fogo! Fica aí na tua trincheira que me dói Assobia, assobia! Faz de conta que não dás por nada Afinal tudo o que importa é que é natal E o que de grave e útil existe, está do outro lado onde desfilam rostos calados colados ao chão. Repara! A camisola tem nódoa e está rota O aspeto é de pobre que não se endireita Cheiro a mofo e a tédio… A tua camisola está lavada Não tem um buraco sequer… Abre, abre fogo! Mas não te esqueças O teu aspeto também é de pobre porque afinal somos todos valas enlameadas carpimos mágoas guardadas em arcas fechadas embora alguns exibam faces de gumes perfeitos escondidos nas suas trincheiras. Mónica Costa (imagem retirada de https://plus.google.com/)

natal 3

Estava a caixa encostada atrás da porta há um ano. Tanto pó! E tu a protestares! Havia já uma considerável camada de pó. Lá dentro um pinheirito de plástico todo encolhido. Foste lá buscá-lo para quê? É todos os anos a mesma coisa. Já sabes o que te vai acontecer... Tiras o pinheiro da caixa cuidadosamente e ficas esticando nervosamente as hastes verdes para cima e para baixo para dar corpulência ao pinheiro raquítico. De repente, reparas que o pinheiro está torto e não se endireita, falta-lhe uma das partes do tripé. Não pode ser! Comprar outro está fora de questão! E tu a protestares! Portanto, vai-se à dispensa e traz-se o escadote. Colocas-te no cimo da escadaria e arrebitas o nariz para cima da prateleira mais alta onde existem umas ripas de madeira que poderão servir de pé disfarçado para esta árvore que todos os anos dá sinais de fraqueza. Esticas-te um pouco mais e… caíste? Oh, não! Está tudo bem? Sempre o mesmo! Sempre aos tombos! Não tinhas prometido que ias melhorar quanto

Natal 2

Acreditar no pai natal é magia Deixar de acreditar no pai natal é desilusão Não acreditar no pai natal com veemência é alívio medíocre… damos ar de fortes e de seres orgulhosos pela perda de virgindade porque agora experientes e sábios … mas desconsolados e medíocres ninguém nos avisou que a única coisa que nos vale é a magia!... Mónica Costa (imagem retirada de https://www.bioorbis.org)

Natal 1

Vai aparecendo o natal devagarinho e choca…Vem camuflado… diluído na hipocrisia social que nos abafa! Não o sentimos verdadeiramente e, no entanto, construímo-lo subtilmente… e vai sendo engolido pela engrenagem económica. Corre o povo à procura do presente ideal!!!! E há sempre um anjinho que, a medo, se aventura a recordar: «Natal é nascimento!» E o povo continua na sua azáfama consumista… e faz de conta que nem ouve. Desmontar a máquina dá trabalho… é lutar contra a corrente. E, por descargo da consciência, desata-se com uma série de campanhas solidárias para os necessitados que são de todo o ano. Porque é este o tempo da fome e da vulnerabilidade!... Não dos que passam fome todo o ano (esses já estão habituados…), mas a vulnerabilidade de quem consegue estar em paz nas suas casas quentes sem pensar nos da rua frios. Mónica Costa (pintura de Rafael Sanzio)

Que bela lhe apareceu a vida naquele instante!

Diante daquela janela estendiam-se campos e campos verdes. Eram vinhedos e árvores ao alto. Era essa sempre a perspetiva de quem se estendia ao comprido no alpendre e dava com os olhos em linha sempre segura e acreditável. Mas, naquela tarde, o olhar subiu indisciplinado e ficou fascinado pelo desenho invulgar das nuvens. O céu estava um espanto em movimento de lento azul e havia uma montanha de branco espantoso que se espraiava em rasgos de dança.  Foi assim tão fácil! Nada trazia nas mãos e, de repente, ficou de mãos e olhos cheios! Tudo estava tão tranquilo. Deixou-se, portanto, encantar!  Foi então que se ergueram três figuras esguias em jeito de bailarinas equilibradas nas pontas dos pés.  E rodopiavam! Airosas, com vestidos de tule branco leve, leve, levíssimo.  Eram nuvens dançando com o vento? Ou pernas de mulheres alinhadas em três?! Puro bailado: rodopiavam e inclinavam-se para recolher em abraços os últimos ares outonais. E por cada movimento, desenhavam-se

Fake news

Cuidado com as histórias que ouves! Hoje, mais do que nunca, deverás ter cuidado com as histórias da carochinha que te impingem.  E é exatamente para desconstruir este tipo de enredos fantasistas que, naquela longínqua floresta, se prepara uma conferência de imprensa. E tudo por causa do disse que disse. Não é possível continuarmos sempre a contar a mesma história. Não é possível viver sempre das mesmas certezas. Os tempos mudam e as verdades também. O mundo está preparado para problematizar!  E a verdade é que, neste preciso momento, a famosa Avozinha prepara cartazes apelativos capazes de dar a devida visibilidade ao acontecimento, apostando numa boa sinalização dos pontos-chave para que nenhum dos jornalistas convidados se perca e cheguem todos atempadamente ao local escolhido. Há quanto tempo não havia agitação naquela floresta! Como moderador desta conferência, escolheu-se o afamado Caçador, misantropo voluntário, conhecido pela sua frieza e antipatia por tudo o que se pode c

Maldito seja quem rompeu a luta

Mexendo no baú, descobre-se, por vezes, verdadeiros tesouros.  O meu avô era tipógrafo, não era letrado. Pessoa humilde, alma de poeta! Nos tempos livres, e dando asas à sua imaginação, escrevia.  Aqui vai um poema do meu avô! Nesta Terra de belas tradições Já não sorri a Alma Portuguesa, Numa candura etérea e de beleza, Que vibrava nos lusos corações... Chora co'a Pátria a alma de Camões A glória de um passado de grandeza, Enquanto os homens, numa luta acesa, Procuram saciar as ambições... Oh! Pátria refulgente de outras eras, Terra de heróis, de santos e guerreiros, De aventuras e Lendas e Quimeras!... Desperta, altiva, e o nosso mal escuta! E grita àqueles maus aventureiros: Maldito seja quem rompeu a luta! Texto de Raul da Costa Querido e foto de Eduardo Urculo

Sob pressão

E é, precisamente, quando a perversa lucidez vem que nos sentimos incapazes e sob pressão! É, precisamente, quando a perversa lucidez não convém que surge um súbito reconhecimento idiota de um mundo a sério em formato negociável! É o terror de sabermos o que, afinal, o mundo é! É ver alguém gritar em silêncio: «Quero sair!» É estar um sol magnífico, nunca chover e surgir um impertinente e lancinante remoer: E amanhã? E amanhã? E amanhã? Como será? Porquê eu? Porquê eu? Porquê eu? Somos nós mesmos sob pressão! E é nesse preciso momento de tensão que, abandonando a lucidez, nos lembramos que é tudo uma questão  de cuidar de quem está no limite da noite! Nos lembrarmos que é tudo uma questão de amarmos no nosso próprio sentido cuidando de nós próprios e dos outros! É este o último desafio! É esta a nossa única dança! Mónica Costa

Obrigada!

O meu texto é, hoje, dedicado a todas aquelas pessoas que têm entrado na minha vida de forma especial. Apetece-me! Só porque sim! Às vezes, passam anos e nunca conseguimos ter a coragem de dizer o quão especial é determinada pessoa na nossa vida. E andamos cabisbaixos, macambúzios, a soprar umas meias palavras em modo fantasma. Alguns sussurram entre dentes que já nem acreditam nas pessoas!!  Seria bom que mudássemos de atitude! Todos! Eu sei que para algumas pessoas, por orgulho ou por receio de não se saber escolher as melhores palavras (às vezes, eu sou assim), é difícil assumir essa postura de frontalidade. Outros, por uma questão de erro de educação, não estão habituados a essa frontalidade. Não é uma questão de elogio! Não! É uma questão de frontalidade: «Olha, nunca te disse, mas ficas a saber que o teu sorriso, logo pela manhã, dá-me força para enfrentar este meu dia que vai ser árduo!». E ambos seguem de sorriso leve que torna mais leve o dia!! Fácil, não é? E tão difícil

Don´t worry, be happy!

Quando os casos se tornam graves... começam a faltar as palavras... E, em último caso, uma palavra basta... Costuma o médico dizer com ar sério quando, com ar sério, se pergunta:- É grave, doutor? …ele simplesmente se detém com um ar sério... e culmina com uma expressão de séria tranquilidade: - Há que ter fé...! E quando um homem de ciência solta como única palavra possível a... Fé, o caso é grave!... E é só nessa altura que nós percebemos a gravidade da situação... Portanto, enquanto o caso não for grave, que não nos faltem as palavras!! O melhor a fazer é arranjar forma de nos divertirmos e ir palavreando à exata distância que nos salva daquela porta! Aprender a lidar com a doce ternura do ir acordando devagar e do ir aprendendo a cheirar os odores da manhã! Aprender que, hoje, é nevoeiro denso, mas, amanhã, é sol radiante!!  E é por isso que há sempre dia e há sempre noite! E depois o caminho vai progredindo e há sempre uma música no ar que nos vai envolvendo lentamente ao s

No meio...

Ali no fundo sou eu mesma Ali no fundo é a minha raíz! Ali à frente sou eu mesma, é o mar que ouves Ali à frente é a minha alma! Ali atrás há uma sombra Ali atrás é o meu amor que se afastou Ali em cima sou eu mesma, um silêncio que faz eco e se vai repetindo em nuvens de mil e uma formas No meio de tudo isto, um coração que se agita! Um coração que dança! Mónica Costa

Continuo à espera...

Nunca seria assim que começaria esta pequena narrativa se tudo seguisse o seu percurso normal.  Habitualmente, tudo decorre de uma ação passada. Os escritos partem sempre de algo que nos aconteceu ou vimos acontecer e é assim que tudo se compõe. Mas, desta vez, estou à espera que aconteça alguma coisa. E continuo à espera…há muito tempo que nada acontece. O caso parece complicadíssimo. Está tudo paralisado. Eu adoro sentir as minhas pernas dando largas passadas e absorver o movimento do que me rodeia. No entanto, a neve não cai, o sol não brilha, os pássaros não aparecem, a água não corre, não há vento, não há nuvens. As pessoas estão sentadas e abstraídas a mastigar. Atrever-me-ia mesmo a dizer, a ruminar. Os seus olhares vazios transformam tudo em coisas invisíveis. Não há qualquer motivação. E ninguém parece preocupado com tal situação. Mesmo assistindo a um chão que lhes foge debaixo dos pés. Se nada acontece e ninguém se mexe, qualquer tentativa mais eufórica da minha parte é a

E aquilo que resta é sempre o início de algo feliz!

Hoje! Aula dedicada a provérbios e quadras populares. A sabedoria popular! Miúdos de doze anos a pensar provérbios!! Que aparente disparate! Um dos provérbios vinha a propósito do tempo! E começa uma série de queixas: - Faz chuva, dia cinzento… - Foi-se o verão! - Oh! Que pena! – exclamam todos! - Lá se foi a piscina! - Aulas!! Que seca…! E diz alguém, de dedo em riste:  - «Depois da tempestade, vem a bonança!» E lá se desfiou uma conversa da qual se extraiu uma verdadeira lição – simples e eficaz. - Não nos podemos queixar! Temos de aproveitar o que temos! (Às vezes, é tão reconfortante ouvir a inconsciente ingenuidade otimista das crianças!) Diz a Bruna: - Olhe, professora, está um dia cinzento, um dia de chuva…posso dedicar-lhe umas quadras? E desata a escrever! Aqui fica a lição simples e eficaz! A lembrar que o fim é aquilo que resta. E aquilo que resta é sempre o início de algo feliz! É dia frio e muito cinzento e o que mais se ouve é o som do vento. Não se vê

Ler é escolher!

Mia Couto, escritor moçambicano, e sempre atento às questões da Literatura como fonte de Humanidade, desenvolveu várias questões interessantes no âmbito de um congresso de Leitura, realizado em Campinas, e cuja intervenção ficou conhecida pelo título «Quebrar armadilhas».  Uma dessas ideias que me apraz retomar aqui é a questão da Leitura, propriamente dita. Como profissional da Língua Portuguesa e amante incondicional da linguagem literária, sinto uma terrível dor quando um aluno ou um filho, um amigo ou um familiar me diz que não gosta de ler e não lê. Eu costumo responder que, provavelmente, ainda não encontrou o seu livro ideal, mas, para o encontrar, é preciso ter a persistência necessária para ir procurando. E aquilo que mais inquieta é saber que quanto menos se lê, menos se tem capacidade para escolher. É esta uma das ideias constantes nesse discurso de Mia Couto que me cativou. A palavra «Ler» vem da palavra latina «legere» que quer dizer «escolher». Daí que exista ainda a

Cuidado! Os ouvidos têm paredes!

Ora, de um lado! O protagonista deste lado são todos os que habitam aquela rua. Um rapazito de onze anos que tem uma doença rara e a sua família que sofre. Um grupo de camponeses que se esfalfam a trabalhar e ganham pouco, mas são felizes. Um indivíduo de temperamento depressivo que passa a vida a gritar com os filhos. Uma dona de casa azafamada que se desdobra também em limpezas fora de casa. Uma elegante rapariga que faz torcer o pescoço aos que passam por ela. O merceeiro que decidiu instalar-se na mesma rua que o padeiro para benefício de todos que, assim, já não têm de se deslocar ao centro da vila. Há afazeres domésticos e profissionais que agitam esta gente, há amores e desamores, zangas e disparates, fofocas, exageros e suavidades. As casas foram construídas umas ao lado das outras, contíguas, portanto. São casas rasteiras de muros baixos e sem sebes. Há portões quase sempre abertos e todos se conhecem. À noite, as portas fecham-se e as janelas descem as suas persianas, mas t

Pedra sem musgo

Viro-me de um lado, viro-me do avesso agito-me nesta cadeira, enrolo os cabelos entre os dedos, apoio o queixo nas palmas das mãos. Resmungo! Mas pouco… Esta manhã, deixaram-me, em cima desta mesa onde escrevo, um bilhete, um pequenino bilhete… e fugiram. As ideias mais tenebrosas e ruins fugiram de mim. Teria sido um ato inteligente tê-las cativado, ter-lhes dito ao ouvido, em jeito de segredo, que me faziam falta, que eram o motor da minha inspiração. Ter ideias suaves é uma benção.  Mas ter só ideias suaves é uma monotonia! Vão-se as ideias ruins e fica um sabor agridoce... Resta apenas um esboço sem cor. Fica a pedra sem musgo! Mónica Costa

A trabalhar?!!

Ela pertencia àquele grupo de gente que trabalha, mas parece que não trabalha.  Por dois motivos muito claros: a matéria do seu trabalho é mágica e porque este tipo de gente gosta tanto do que faz que até parece que gosta mesmo.  E este facto cria, em certos indivíduos, uma inveja miudinha!  - Como é possível tirar-se prazer do trabalho?!! E lembra-se de um seu amigo que ganha a vida a pintar! Imaginem! É o seu trabalho! Cada quadro que vende são uns milhares de euros! (E esta pequena informação só foi incluída neste momento narrativo para tornar mais credível a ideia de pintura como um trabalho. É que há pessoas que só ouvem quando se lhes fala em números. Para esses, trabalho é sinónimo de números, rendimento, milhares de euros).  É neste momento que um desses indivíduos corroídos pela inveja miudinha se aproxima: - Olá!  - Olá!  - Tudo bem?  - Tudo bem!  Conversa curta e de circunstância! Depois destes preliminares, atira certeiro e irónico: - Descansas?  El

Uma malga de marmelada que é muito mais do que uma simples malga de marmelada!

Este texto que, hoje, aqui exponho, é um convite aos sentidos. Há cores,mas sobretudo cheiros e sabores e sentimentos. O palco deste texto é uma cozinha.  A cozinha é um dos espaços do outono. Não é uma cozinha branca clean como anunciam os catálogos do Ikea, mas um espaço tépido e doce com mesas de madeira antiga e toalha aos quadrados a fazer lembrar o tempo das nossas avós. E aqui fica a primeira referência sensorial.Já se situaram em termos visuais? Muito bem! Não há cadeiras nesta cozinha, só bancos toscos, abóboras e hortaliças espalhadas em cima da mesa e caixas, no chão, com fruta; figos, castanhas, diospiros, tangerinas e avelãs. É um lugar perfeitamente desarrumado porque há gente feliz que cozinha. Estão a sentir uma ligeira corrente de ar? Vem da janela com as suas cortinas de renda de branco imaculado que separam a luz interior aconchegante do exterior outonal acastanhado que se debruça em curiosidade por tudo o que de maravilhoso acontece deste lado onde estás.  Eu t

É assim que a ação se simplifica

Dou cabo disto tudo num instantinho! Esses montes destruo-os à picareta; E esses caminhos em serpente estico-os em linha reta; Atiro por terra aquele sol; E esse silêncio aterrador quebro-o com um grito; E viro fogo! E esse fogo se expande em degraus até ao céu. Mónica Costa

Sem algazarra ou conversa fiada

Há um eu que insiste em mim O próprio eu muito mais forte que o eu que mostro todos os dias. Um eu com as suas tranquilidades outras vezes com suas fragilidades em mim nas suas alegrias e junto do meu próprio cheiro. O eu próprio em mim! Há um eu que insiste em mim sem algazarra ou conversa fiada Um eu fundido na sua própria voz sem artifício e sem maldade Um eu que sabe o que quer! Mónica Costa

...e adormeço finalmente...

1, 2, 3, 4, 5, 6 carneirinhos. 7, 8, 9, 10 carneirinhos… Só gostava eu de saber quem inventou esta de contar carneirinhos!!  Mas há uma outra técnica, ainda mais estranha do que esta. É uma técnica meditativa que consiste em fixarmos a nossa atenção num determinado som. Fecha-se os olhos e fixamos toda a nossa energia nos pequenos sons do dia. Neste caso, da noite. Ping, ping, ping, ping… (Eu não sabia que a torneira pingava tanto! Que gasto! Amanhã tenho de ver se alguém trata deste assunto, pois qualquer dia não tenho dinheiro para pagar a fatura da água!)  E agora, que me concentro nos sons da noite, é que reparo (como nunca tinha reparado) na quantidade de pequeninos barulhos: o bébé do 4º direito chora tanto! E nunca tinha reparado que até há um galo que canta à noite!! Os cães ladram que se fartam lá ao longe e ainda há grilos no campo aqui ao lado!! Até os móveis do quarto parecem que ganharam vida, rangem portas e gavetas, parece que se estilhaçam madeiras, chiam baixinho

Linguagem-pele

Estas imagens com cheiro a terra molhada, depois de um dia quente de verão, são palavras que ganharam nariz. E as palavras escritas com tinta destas janelas abertas em espanto são a bela linguagem dos olhos. E essa linguagem ouve uma música que vai aparecendo suave pelo desejo que ali soasse em palavras-ouvido. E toda esta linguagem é pele com sabor a  boca e são palavras mãos que tocam. E toda a linguagem é pele que ganhou dedos. Mónica Costa (inspiração Roland Barthes)

Filho!

Hoje vou desmurmurar sentimentos e peço silêncio que se vai cantar o Amor Sem pestanejar! A noite que se aproxima vejo-a, olhando para trás Mais uma vez foi fechada a porta de mais um dia A azáfama da tarde parou E a avenida parece agora inclinada de tanto que custa a subir ao final de cada dia As ruas, as pessoas que se cruzam connosco, o vento, o calor, o trabalho, o cansaço levo-os comigo, mas engulo tudo. E, quando ao espelho, faço a limpeza da pele, apago tudo. A casa ganha luz! E, agora, encosto o rosto à almofada, faço contas à vida: o Amor, força maior. Era esta a força de que ouvia falar. Falavam as mães desta força quando ainda não era mãe e não percebia. Agora sinto-a! O Amor vem depois de tudo e aguarda-nos no quente de uma casa. O Amor surge em forma de braços que nos envolvem O abraço do nosso filho! Mónica Costa (quadro de Gustave Klimt)

Ganhou a palavra através do fruto

A minha árvore transborda. Já foi flor! Está torta, cheia e feliz de tantos frutos que brota. Ganhou a palavra através do fruto.  Alguns, de maduros, já caem no chão, outros esperam por mim. Os que caem por terra espalham-se suculentos, semeiam cores, vaidades e gulas, temperam a terra de doçura. Outros esperarão por mim. E esses, sim, serão, os meus frutos da minha árvore que tombam em mim molemente e, lascivos, alimentar-me-ão de doçura em prazer de língua. Escorregarão pela garganta abaixo, criando rutura entre o fogo da sede de verão e a água das chuvas de inverno.  E neste outono, tela amarela e castanha, a minha palavra e toda a fruta que brota é pincel que tinge de respiração errante a nostalgia dos campos onde a minha árvore descansa. Mónica Costa

Seguir limpo

Não seria nada mau se todos nós estivessemos cercados de verde. Sempre dispostos para a luz. E existiria uma cortina azul que se abriria realmente majestosa. Sempre.  Agora, enquanto atores, podemos estar seguros do que se passa, mesmo sem termos uma clara ideia de nós próprios fora deste palco. Fora dele, ninguém tem ideia clara de si próprio, aliás! Mas também não interessa neste caso…visto estarmos perante um interessante dispositivo dramático. Assim sendo, e como dizia, existe uma cortina azul que tu vês daí. Estás sentado há cerca de dez minutos à espera que inicie este espetáculo. Pagaste bilhete e isso dá-te direito de exigires qualidade. Estás à espera de encontrar o quê? Sorrisos e modos simpáticos? Ou feras que dão cabo de situações delicadas? Fúrias desenfreadas que amachucam, trituram e estilhaçam? Ou simplesmente uma voz excruciante que te lembre a tua própria condição? Acho que estás à espera de te encontrares! É para isso que se vem ao teatro. O teatro é metáfora em

Natureza

É céu é asa é desassossego É descoberta é alerta é porta aberta Mãos de ar corpo de sonho água de mar É caldo em panela de ferro É chama é cinza é luz É mão é terra é raíz É ancinho que sabe o que faz Força que puxa por nós É terra é húmus é paz! Mónica Costa

Bolha

Todos parecem explodir Bolhas ambulantes e sobreviventes Pouco confiantes mas convivem Abafam, sustêm o ar Pés nas nuvens (quais pés?? Não há pés!!) Pousam em rodopio Têm os ouvidos a estalar As linhas vêem-nas tortas! Vou espirrar Para ver se a bolha que nos envolve rebenta! Mónica Costa (fotografia de Shawn Van Daele)

Há um tédio que nos assiste a todos...

Paro: Está branco em céu aberto nesta janela de fundo de rua Espreito por uma fresta desta abandonada porta escura E reparo: Ouço risos perfeitos em festa, há afagos que se escapam Sinto corpos em alerta atrás destas paredes que me tapam Penso: Quanta magia e doçura fervilham por detrás de paredes caiadas de casitas escuras que aparecem assim do nada! E quantas dores e misérias se instalam por detrás de paredes luxuosas de verdadeiros palácios que são casas claridade! E continuo pensando: E, às vezes, parecem grandes as nossas pequenas desgraças porque choramos colados às nossas paredes caiadas imaginando as paredes sumptuosas das casas fáceis. Concluo: Há um tédio que nos assiste a todos independentemente de paredes luxuosas ou caiadas E dentro de cada casa, mesmo que em festa, A tua e a minha vidas existem em eterna vertigem Risos, afagos, magia, doçura e coragem São, afinal, a única loucura que nos resta E que transformam qualquer janela escura Em janela branc

A fúria de um monólogo

São os jovens. São os filhos matulões quase nos trinta que vivem em casa dos pais à espera de melhor sorte. Os Quinta do Bill cantavam, há cerca de 25 anos, em jeito de hino entusiástico que fazia saltar multidões, as palavras de Carlos Moisés - «Os filhos da nação». Dirigiam-se aos jovens atentos! E os jovens atentos gostavam de Música! Nessa altura, eu era uma dessas jovens! Atenta? Nem sempre… Tal como eu, muitos jovens, os nascidos nos anos setenta, confiavam apenas num sistema que lhes dava acesso a um mundo de trabalho, com esperança de se transformar em trabalho efetivo e estável e «no canudo vivia a esperança». Estudavam para ter opinião sobre os assuntos e para ter uma vida melhor. Era altura, dizem os registos históricos, de contestação estudantil intensa. Quem teve a coragem de estudar e organizar as suas vidas, conseguiu alguma estabilidade. Hoje, os jovens de 24 anos, nascidos em 1994, vivem a angústia de quem ainda não se habituou à ideia de viver um sistema que apenas

Magnífico... a paisagem!

A paisagem aqui está. Sempre aqui esteve. É o que é: Magnífica! Inteira! Sem efeitos especiais! E nós cá andamos há 3.500 milhões de anos! Ainda bem que os primeiros de nós levantaram as patas dianteiras e atiraram o focinho para o além, enxergando novos horizontes! E é nestes propósitos de curiosidade que vamos andando, retirando das paisagens o que nos convém.  O homem do campo, por exemplo, olha a sua horta, admirando a robustez das nabiças, a pujança do fruto que cresce nas suas árvores, a beleza dos torneados da couve portuguesa que brota imponente da terra e pensa as suas sementes que serão pão partilhado dali a uns dias. O engenheiro, arquiteto e construtor detêm o olhar nas formas e nas curvas, ou seja, na geometria dos elementos puros da natureza que se erguem sumptuosos à sua frente e pensam as linhas que se materializarão em pontes e monumentos daí a uns tempos. O pintor, por sua vez, olha as águas de um rio abrilhantadas pela luz radiosa do sol ou contempla o perfil dos

Se caíres, nunca será por dentro

Tu não sabes o que é o Amor até que alguém te explique o valor do som do vento e o valor da intensidade da luz que irradias e o que custa é deixar soltar o coração e perderes-te olhar em tom de suavidade deixar ficar nos ombros umas nuvenzitas nas mãos algumas reticências a teu lado sempre um arco íris e acima de ti mais nada E mesmo que a solidão te aguarde se caíres,  nunca será por dentro! Mónica Costa

Deixa-te sonhar!

Água espuma, lá vamos nós Confiantes a pensar que vamos ser os primeiros a chegar à terra do deslumbramento (mal sabemos nós que vamos carregados de sal…) Água é espuma! Deixa-te sonhar! Talvez seja melhor nem a perturbar E ficar assim a apreciar o lado da beleza e da fantasia onde a alma descansa. E na intermitência do que é e não é seremos mesmo os primeiros a chegar à terra do deslumbramento! Mónica Costa (pintura de René Magritte)

Agora sim!

Corpo parado, olhos fechados. Vais acordar, vais acordar para a Vida…? Vais-te levantar e começar a andar. Olha à tua volta! Está um tempo ameno. Não há calor demasiado, passa uma brisa serena. À tua volta existe um verde demasiadamente belo. Deves observá-lo com atenção. Detém-te nas folhagens que se agitam. Ouves? Vibram à tua passagem. Esse som tranquilizante faz com que encares, todos os dias, os teus problemas com paz na alma. Ouve e vê e, enquanto caminhas, sorri. Agora acelera um pouco mais. Sentes? Ritmo! Chama-se ritmo! Acelera um pouco mais e atira-te a uma corrida! Há uma maior quantidade de sangue circulando dentro do teu coração. Isso! Sentes o impacto dos teus pés no chão! E o chão sente a tua energia. O sistema respiratório existe! Pensavas que nem conseguias respirar em condições e agora estás a arfar! O teu sistema está alerta! Os níveis de oxigénio e dióxido de carbono estão estáveis. Respira! Inspiras e expiras! A frequência respiratória aumenta! Pára e recomeça!

Tanta energia!

Aqui vos apresento os primeiros versos da cantiga de abertura de um dos desenhos animados da Disney mais hilariantes de todos os tempos: Phineas & Ferb: Cento e quatro dias que fazem as férias, a escola acaba com elas, mas o grande problema que todos vivemos é saber como aproveitá-las!! – dizem o Phineas e Ferb. E é quase impossível não ler isto a cantar! Pelo menos, para qualquer mãe que se preze e que conhece esta saga de aventuras. E qualquer pai ou mãe, neste momento do ano, alterarão imediatamente a letra desta cantiga para: 104 dias??!! Tanto tempo!! Nunca mais começa a escola!! Cadê os professores para nos aliviarem a carga?? É que o grande problema que todos vivemos é saber como suportar tanta energia! Cento e quatro dias!! Um dia, vinte e quatro horas, mil quatrocentos e quarenta minutos, oitenta e seis mil e quatrocentos segundos! É só fazer as contas! Portanto, isto é de loucos quando está em causa o seguinte: uma casa com filhos pequenos ou graúdos, férias intermináv

Jornal de cara lavada

Neste momento preciso, num qualquer dia de agosto deu-se o surreal acontecimento quando me preparava para o café matinal. O jornal que folheava tinha ares novos tinha havido uma inundação de informações da primeira à última página! Mas... informações prazeirosas histórias dignas de respeito e admiração casos de vida inspiradores!! Não é sensacionalismo! Não é imaginação! Atiraram fora as desgraças! as politiquices!! as fofocas e os absurdos!! Até a publicidade vinha de cara lavada! Expunha-se slogans que há anos não se viam em nenhum lado do género: «Dê um passeio em família!» ou «Leia um livro!» Até a secção da necrologia tinha sido substituida! Em lugar dos mortos fazia-se o elogio dos vivos e o louvor aos nascidos e aos respetivos apoios que os consolam!!! Mónica Costa (foto de Robert Doisneau)

Coração de harpa e cricrilar de grilos

Nascera pobre, um de seis irmãos. Tempo de guerra e fome. Todos descalços e habituados a roubar os frutos dos quintais da aristocracia. Banhos, só os de tanque com água gelada de inverno e mais três ou quatro tostões ganhos à base de muito trabalho desde tenra idade. E as famílias pobres portuguesas assim se sustinham nos anos pós segunda guerra. Havia pão recesso, quarta-classe para os sortudos e à custa de muita reguada. Crescera à lei da natureza, roto quase sempre, feliz na maioria das vezes. Espírito de luta e ambição suficiente para se ir safando. E quando conseguiu emprego digno de um cidadão de classe média, entregava quase tudo aos pobres. A que se reduz afinal a vida? - perguntava frequentemente – Apenas a um pedacito de emoção. Se tivesse de rebobinar a cassette, carregava no botão «On» no exato momento em que um tal Volkswagen estacionava ali mesmo numa tal garagem. O caminho em paralelos impunha sempre uma chegada pouco discreta. Um Volkswagen branco alinhado para a a