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Coração de harpa e cricrilar de grilos

Nascera pobre, um de seis irmãos. Tempo de guerra e fome. Todos descalços e habituados a roubar os frutos dos quintais da aristocracia. Banhos, só os de tanque com água gelada de inverno e mais três ou quatro tostões ganhos à base de muito trabalho desde tenra idade. E as famílias pobres portuguesas assim se sustinham nos anos pós segunda guerra. Havia pão recesso, quarta-classe para os sortudos e à custa de muita reguada.
Crescera à lei da natureza, roto quase sempre, feliz na maioria das vezes. Espírito de luta e ambição suficiente para se ir safando. E quando conseguiu emprego digno de um cidadão de classe média, entregava quase tudo aos pobres. A que se reduz afinal a vida? - perguntava frequentemente – Apenas a um pedacito de emoção.
Se tivesse de rebobinar a cassette, carregava no botão «On» no exato momento em que um tal Volkswagen estacionava ali mesmo numa tal garagem. O caminho em paralelos impunha sempre uma chegada pouco discreta. Um Volkswagen branco alinhado para a aventura. Se fechar os olhos, ainda consigo ouvir o chiar do motor. E consigo copiar todas as manobras empreendidas para conseguir estacionar aquele veículo em garagem de acesso difícil. 
E do tal Volkswagen saía um ser algo trôpego, às vezes, mas alegre quase sempre. Cheirava a rua, a café e a tabaco. Eu esperava por ele, a emoção chegava a casa! Nunca fora um homem de inação e ainda bem para ele. Nunca fora talhado para grandes empreendimentos. Era um indivíduo em corda bamba. Quem gostava, gostava, quem não gostava, que gostasse! Um trabalho organizado e meticuloso, com horários rígidos das nove às cinco era coisa de ratos em gaiola. Detestava! Tudo o que desejava era fruto dos desejos por si só e tudo o que obtinha era fruto do acaso. Não tinha feitio para verdadeiro chefe de família, na aceção mais tradicional do termo. Não tinha paciência para ficar em casa agarrado à televisão ou ao jornal, não tinha vocação para lides domésticas que considerava indignas de um verdadeiro macho latino. Por tudo isto, ele era a presença fugidia ao final dos dias da semana, e era vê-lo escapulir-se à noite, aos fins de semana, reaparecendo já de madrugada. Poucos os dias para a família, mas, quando estava, estava e de que maneira! O dia parecia sempre tão curto para quem gostava tanto de viver e conviver. Fugia constantemente de fantasmas e agonias. Adorava fato e gravata. Os amigos que mais lhe interessavam eram os fadistas, os artistas, os desabridos de espírito, os da vida airada, os gabirus. Uma viola e uma voz para cantar eram o suficiente, um copito para molhar o bico, uns pasteis de bacalhau e estava a festa montada. Perto dele, não havia agruras.
Se eu fechar os olhos, apenas conservo na memória, não as angústias e os tormentos que o estatuto de bon vivant acarretavam, mas apenas as emoções associadas a pequenos, e muitos, momentos deliciosos de infinita ternura. Todos os domingos, depois da missa, lá íamos de saco na mão cheio de migalhas de pão para alegrar as pombas e os patos do parque. E, nas manhãs de primavera ou verão, havia pequeno-almoço reforçado no pátio. E havia melros e canários por todo o lado, lá em casa. E havia ralis até à praia azul no tal Volkswagen, grandes curvas sem cinto de segurança, viagens de solavancos e de felicidade. E brincadeiras com bacalhaus miniatura, caixas de canetas Bic e caderninhos axadrezados em tons avermelhados a fazer lembrar as saias dos escoceses, onde se desenhava livremente. Havia pequenos passeios e grandes descobertas, havia piqueniques e canas de pesca (peixes quase nunca…) …havia música, muita música… livros com histórias e histórias sem livros, cadernetas de cromos…filmes a preto e branco…vida.
Quando uma pessoa deste género morre, acaba por não morrer nunca. É pessoa com coração de harpa e cricrilar de grilos. Portanto, a única sensação que perdura é a de cor, de música, de saudade, mas sempre com direito a sorriso interior.
Vou topando que a confusão e aquilo que de mais sério e pertinente me impingem não valem nada, comparado com os pequenos momentos de beleza que fazem humedecer um olhar. A verdadeira herança que um pai pode deixar a um filho é a de ensinar a beleza do sabor de viver, do prazer do cheiro dos livros e do encanto da música, da magia dos filmes e das fotografias, do valor dos sítios que se transformam em lugares especiais, da força de um aperto de mão e de um abraço. Alguém que é capaz de nos atirar para o mundo e dizer, a certa altura, «Agora, safa-te».
Como dizia alguém: só morre quem nunca viveu!
O que ficou em mim de poesia, que é das maiores ternuras necessárias, e de desenrasque, uma das forças das mais essenciais para a vida, foi-me dado pelo meu pai! 

Mónica Costa



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