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A mostrar mensagens de agosto, 2019

A bem da cultura

Transmitir cultura e beleza aos nossos jovens é, por exemplo, apostar em estações de caminhos de ferro recuperadas. E não digo, destruir tudo e compor edifícios em betão. Digo, manter a traça original, restaurar, dar brilho. Quem anda de comboio (como eu), vê muitos jovens que entram e saem. Conhecem as estações e os apeadeiros.  Ontem, tive a oportunidade de apreciar com pormenor a Estação da Granja (Espinho). Maravilhosa a linha de Aveiro! E esta estação em particular é encantadora. Pequenina, humilde e bela. Esquecida… Azulejos de um azul fantástico, todos deteorados! Rachadelas nas paredes! Tijolos de um laranja magnífico prestes a sair das paredes! Esta estação chora por todos os lados! E, no entanto, mesmo no meio de todo este desmazelo, reina a Beleza! E a cultura! Pinturas fantásticas em azulejos alusivas a várias partes do nosso país! Um passadiço mal engendrado que vai dar a uma praia deliciosa! À volta da estação abundam casas aristocráticas, algumas em ruínas, mas a maio

Uma vida inteira

Perdeu-se! E a culpa foi da máquina de costura! Criatura quase esquelética, sempre fechada em sítio de silêncio e amargura, de olhos colados em tecido de fibra sintética, os dedos minuciosos apesar das artroses e os pés sempre atentos – triste figura! Era de uma coordenação exímia, de um alinhamento perfeito. A espinha curvada em assento duro e, depois de dado o aval ao calcador, era só contar 1, 2, 3, e partida segura em tttttttt frenético!!!! Um barulho de agulhas e pedais que se estendiam pela ruela acima. Picava a agulha e ía tecendo o seu caminho em ziguezague de três pontos como assinatura, mas com receio de perfurar os dedos escandalosamente minuciosos naquela maquinaria fina e obscura. Que visão imponente e trágica! Uma vida inteira a compor pedaços de dias e bocados de momentos dos outros num trabalho de teimoso patchwork ! Nunca lhe tinha passado pela cabeça agir, costurar noutro instrumento rudimentar tão eficaz e trágico tão fiel a esta máquina de

... e da lama nasce a flor de Lótus

No outro dia, vi um programa televisivo dedicado a Taiwan e, numa das suas cidades mais populosas, Taipé, a maioria das pessoas circula nas ruas e nos transportes públicos com medo de se contagiarem ou contagiarem os outros. Usam máscaras que escondem sorrisos! E seja nesta ponta ocidental ou no recanto mais oriental, somos cada vez menos isto e cada vez mais aquilo.  Cada vez mais extremos disto e daquilo. Ou se está pateticamente feliz ou exageradamente deprimido, ou se está morto de cansaço pelo trabalho excessivo ou parado no tempo inútil, ou nos encontramos ou nos isolamos. Ou vivemos no caos ou vivemos na ordem. Já não há lugar nem paciência. Ou é oito ou oitenta, ou vai ou racha!  Parece que só ambicionamos o excesso, a estrutura, somos feitos de estatutos e de planos cumpridos. Idolatramos a ordem, o semáforo, os pés bem assentes no chão, os horários certos, a confiança, o definitivo, o quente, a tribo, o apoio e o conhecido. Queremos ser os lugares certos, mas atormentad

Pic e Nic

Portanto, hoje, deu-me para investir num piquenique! Que é como quem diz: dar trincadela no naco de forma descontraída e divertida. Fiquem, desde logo, a saber que houve atraso de propósito para criar a saudável ansiedade. E neste cesto de vime trago um largo sorriso! Doçuras, portanto! Daquelas de criar água na boa...Calma suficiente para estender esta toalha aos quadrados neste dia de vento. Espaço e tempo q.b. Coração, vermelho, vermelho, a condizer com os quadrados desta toalha. Esperança de que a tarde dê em flor. E vontade! Daquelas vontades que permitem que nos coloquemos não de lado, mas bem no meio. Água suficiente, verde no horizonte e verde ao perto, daquele verde de sombra. Uma cadeira de encosto para assentar beijos demorados. E enquanto isso, vamos esticando as costas nesta esteira quente e de nariz virado a norte. Brasas as do sol (que hoje deu em tímido!) e tempero o do céu, azul como sempre, belo e legítimo. E assim, juntos em perfeito pic e nic, ficamos a falar, que

Invadimos os ares

E agora visto daqui de cima, nós, que já vivemos cem mil anos, agora que invadimos os ares e nos mantemos aéreos, mais o encontro dos corpos que temos, parece que pertencemos a uma montanha, daquelas coloridas, tipo Vinicunca E, agora, calcorreamos o céu que nos foi dado, abrindo as asas que nos deram para planar dos meus versos para os teus braços… E ao fim do dia, já cansados, podermos aconchegar, ao fim de cem mil anos, fechados em nossas asas Concluindo que afinal é mesmo de nós que vêm as asas! Mónica Costa (foto de Michel Dessans)

semeadores de lixo

Vinte e cinco centímetros de papel amachucado à entrada Três tampas de plástico bem no meio da praia Seis ou sete pacotes de nada, da cor do cinza Oito gaivotas que por ali esvoaçam indiferentes como estas gentes que chegam sem atirar os olhos ao chão para não ver a sua própria desgraça E esta imundície desde a entrada até às profundezas do oceano não deveria constar de poemas assim… Mónica Costa (a obra de arte que vem do lixo de Vik Muniz)

Qual desenhador habituado a certas inclinações!

Às sete em ponto desce a rua e, normalmente, atira-se apressada para dentro da loja nº 79 da Rua Direita.  Esta é uma rua de inclinações muito próprias e nada do que o nome indica, faz acreditar no desalinhamento de prédios e passeios onde até as gentes parecem andar obliquamente. Também não sei se assim é efetivamente ou é de mim e do meu par de óculos. É que nenhuma janela bate certa com outra nem nenhuma porta é do mesmo tamanho. E é, no seio de todo este desacerto, que eu, apesar de péssimo a desenho, consigo desenhar toda esta rua mais as gentes que a povoam.  E, neste desenho diário, há uma certa figurinha. Uma das criaturas mais interessantes que tive oportunidade de enxergar em toda a minha vida. Ora, como dizia, ela entrou apressada na loja do nº 79 e, normalmente, deste ponto onde a miro, nunca lhe tinha admirado o rosto. Vai ligeira quase sempre, de cabelos para a frente e não há ponta de sorriso que se lhe pegue. Mas, hoje, e sem saber muito bem como aconteceu, consegu