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Qual desenhador habituado a certas inclinações!

Às sete em ponto desce a rua e, normalmente, atira-se apressada para dentro da loja nº 79 da Rua Direita. 
Esta é uma rua de inclinações muito próprias e nada do que o nome indica, faz acreditar no desalinhamento de prédios e passeios onde até as gentes parecem andar obliquamente. Também não sei se assim é efetivamente ou é de mim e do meu par de óculos. É que nenhuma janela bate certa com outra nem nenhuma porta é do mesmo tamanho. E é, no seio de todo este desacerto, que eu, apesar de péssimo a desenho, consigo desenhar toda esta rua mais as gentes que a povoam. 
E, neste desenho diário, há uma certa figurinha. Uma das criaturas mais interessantes que tive oportunidade de enxergar em toda a minha vida. Ora, como dizia, ela entrou apressada na loja do nº 79 e, normalmente, deste ponto onde a miro, nunca lhe tinha admirado o rosto. Vai ligeira quase sempre, de cabelos para a frente e não há ponta de sorriso que se lhe pegue. Mas, hoje, e sem saber muito bem como aconteceu, consegui mirá-la de frente. Tinha de ser! Depois de tantos dias de insistência, algum dia tinha de acontecer. Há sempre um momento, quando se é persistente, que permite enxergar alguém de frente. E, desta vez, foi olhos nos olhos. E posso assegurar ter acontecido algo peculiar. Normalmente, são os olhos o espelho da alma, o foque de toda a atenção, mas, neste caso, foi outro ponto que se me afigurou extraordinário. Entre a linha das sobrancelhas e a boca sobressaiu um pormenor que, como tão bem descreveu Lobo Antunes, se pode apelidar de «região autónoma do nariz com o seu governo próprio». Era um ar que tinha a dona daquele nariz! Era dona do seu nariz! Era exatamente assim: um ponto físico, uma rampinha inclinada que combinava na perfeição com todas as inclinações daquela rua. Há quem o tenha achatado ou bico de papagaio, há quem tenha vergonha da sua enorme bicanca. Nunca o nariz costuma ser protagonista em matéria de elogios ou orgulhos. Costuma ser sempre encarado como um apêndice de dois buracos sem a mínima importância. Mas aquele nariz e, naquele rosto, foi o ponto de contacto com aquela figura cujo único objetivo na vida parecia ser a entrada apressada na loja nº 79. 
Continuei todos os dias em postura de desenhador de ruas oblíquas. E, de dia para dia, aquela figura ía desacelerando o passo. Às vezes, lá conseguia arrancar-lhe uma pontita de sorriso. Quem sabe, um dia, ainda consigo fazer deslizar o meu indicador pela cana daquele nariz qual desenhador habituado a certas inclinações!

Mónica Costa




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