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A mostrar mensagens de 2023

descalço-me de sombras para chegar a ti

descalço-me de sombras para chegar a ti as linhas do meu rosto são claríssimas nelas não vês o velho, a criança, o adulto vês apenas o traço comum que é onde eu procuro a tua mão na transparência da minha palavra inteira (Vasco Gato)

Um fragor: é

UM FRAGOR: é a verdade ela mesma que surge entre as pessoas, no meio do turbilhão de metáforas. (Paul Celan)

E lá vai o sujeitinho impune a mexer com as nossas consciências

Uma manhã de nevoeiro, fria. Cheira a torradas. Acabei de engolir o café da manhã e aqui estou eu, dentro do carro, pronta a empreender o mesmo trajeto de todos os dias.  Todas as manhãs, mal dobro a esquina do muro de Vinhas da Índia, deparo-me quase sempre com o mesmo cenário. O trânsito automóvel aumenta e a estrada parece diminuir. Carros e camiões, às vezes tratores e motoretas. Uma azáfama! E no meio da confusão, surge sempre a mesma figurinha de que me apetece falar-vos.  Vai na berma da caótica estrada, correndo o risco de ser atropelada. É que os passeios são exíguos e mal engendrados nesta estrada nacional. São sete e quarenta e cinco deste dia de nevoeiro. E lá vai ele. É um indivíduo magro, aparenta ter sessenta e tal anos, poucas rugas, bastante cabelo grisalho, bem penteado, roupa clara, tão clara que parece exalar um cheiro a sabão Rosa nesta manhã de nevoeiro. Vai direito como quem cumpre um dever, apesar do passo descontraído. Eu penso até que, para ele, a rua está des

o natal é mulher

O Natal é Mulher.  Porque é cor.  Porque é mesa. É alimento.  É companhia. É calor.  Porque é beleza.  É luz. É brilho. É nascimento.  É magia. É alma. É amor.

à prova de balas

Tic tac  tic tac  tic tac.  Desta vez é assim.  Tirar os pés do chão e dar corpo à pele que, afinal e secretamente,  sempre desejamos ter.  Tic tac  tic tac  tic tac.  ... faltam apenas oito dias. 

Mas ao que chega e ao que passa atenta e sente no que restou…

Foi-se o rei e a rainha (quantas vezes idolatrados) Foi-se o conde e a comitiva Foi-se o bobo e a escrava (tantas vezes incompreendidos) Foi-se a forca, a barbárie e o baraço Foi-se o encoberto e o embuçado Foram-se os canhões e os batéis Mas ao que chega e ao que passa atenta e sente no que restou… Foram-se os dedos, loucos anos «dourados» MAS ficaram os anéis…

a noite já vai longa e o adro invariavelmente cheio

a música tem esta particularidade maravilhosa de entrar e ficar para que uma e outra vez se repita e nos chegue numa rua qualquer com a inesgotável nostalgia ou alegria ou tristeza ou saudade mas sempre como algo de bom que fica para sempre

alguns têm a sorte de ficar com as partes piores

Tu que te endireitas mais uma vez nessa cadeira e olhas para mim dessa maneira.  Tu que, por norma, falas de coisas bonitas,  fala-me do fracasso.  Da beleza do fracasso.  Pois bem, sabendo nós que há sol hoje, particularmente, chove.  E a chuva que cai neste dia não anula nem o dia de sol que viveste nem o dia de sol que há de surgir.  Até porque, olhando para ti desse jeito,  está o dia de sol estampado no teu olhar –  o que já sentiste e o que esperas sentir.  Portanto, não falemos de sol.  Falemos de chuva. E de como vieste parar aqui.  Foi por causa da chuva.  Muito provavelmente, se fosse dia de sol,  não terias passado por mim. E está-se bem aqui, não achas?  Sim, muito bem. 

Anda! Não te acanhes!

aquele bocadinho soube à grande alegria das coisas pequenas e boas que nos fazem lembrar que as coisas grandes não são grande coisa

desencontros

Talvez  nunca chegues a ter tempo. De te encontrares para que me encontres.

Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo

Quem te disse que uma decisão a tomar é sempre entre uma coisa certa e uma errada? Quem te disse que a mão que nos estendem é sempre porto seguro? Quem te disse que o caminho andado um dia há de acabar? (o título é um verso de Daniel Faria)

há que dar que fazer ao corpo

há que dar que fazer ao corpo deixá-lo ligar-se, escorrer suor por ali abaixo propor-se roda, fogo, objeto em ascensão há que lhe dar degrau a degrau apesar do peso que o atira ao chão dar-lhe a volta, virá-lo graça, pena, falsete extenuá-lo, dar motivo ao coração para ainda conseguir bater  por dentro das vértebras todas não o deixar esmorecer

Todos somos muitos por dentro

Traz-se homens na cabeça mulheres no peito crianças no ventre velhos na mão os pés arrastam-nos pesados como se fossem vinte de cada lado. Todos somos muitos por dentro. E, no entanto, aparentamos a fragilidade de um só por fora.

eu sei como escapar

as pessoas que são números contas (de subtrair), retornos e préstimos títulos e património, um deve e um haver  pessoas que são sempre de pé atrás cujo valor oscila  de acordo com as flutuações do mercado gente na garantia que não dá ponto sem nó pessoas com a espinha curvada, o sorriso apagado e uma mão cheia de nada são números, não pessoas contabilidade, apenas

ponto de luz

Escutando no vento Tua voz secreta Que me sopra por dentro Deixa-me ser só ser No teu colo eu me entrego Para que me nutras E me envolvas Deixa-me ser só ser Um ponto de luz Que me seduz Aceso na alma Por trás dessa nuvem Ardendo no céu O fogo do sol raie Eternamente quente Liberta-me a mente Um ponto de luz Que me seduz Aceso na alma (Sara Tavares)

tudo arde

Eu sei que sou homem de triste fado porque tu és vermelho tentador de fim de tarde e manhã de branco imaculado  e só me fazes pensar em maldades Tudo arde… mas esse teu rosto em lume brando impedem-me de atingir o patamar do inesperado e tocar esses teus braços que se estiram ao meu lado

Mais, mais, mais

Mais, mais, mais. É assim que o insatisfeito encara a dança. Vem. Só é meia-noite uma vez.

36º espanto

É preciso algum tempo para nos habituarmos.  É preciso que conheças os caminhos que te levam à próxima estação. É preciso que saibas interpretar os horários dos comboios com todos os seus transbordos. É importante saber distinguir as estações dos apeadeiros. É importante poder escolher a melhor hora que te permita uma viagem em assento tranquilo para que possas saborear a música que se desprende do deslizar da carruagem nos carris. É preciso perceber o abrir e fechar de portas e saber ouvir a voz que anuncia a próxima paragem. É preciso aprenderes a sair no sítio certo, mesmo quando as janelas do comboio tateiam a escuridão.  Sei que é preciso tempo para nos habituarmos.  O que me espanta é que, ao fim de trinta e cinco anos de viagens de comboio, consiga ainda encarar o espanto. Preservar a eterna novidade da partida e a ansiedade da chegada. Manter a esperança de desvendar qualquer coisa de brilhante no meio de tanta gente que se arrasta. Ter a certeza de que não há duas viagens igua

nova luz

Espero por ti ansiosamente. Ao fim da tarde. A mesa do café onde te aguardo ganha nova luz. E juro que enquanto espero sob a minha pele te guardo. .

E há aqueles que nasceram para continuar

Há aqueles que nasceram para ficar E há aqueles que nasceram para continuar a fazer a construir a sentir a quebrar, se preciso for a acreditar naquilo que têm e que ninguém lhes pode tirar

Now and then

Há coisas que não precisam de ser ditas Porque  falam  os olhos que se cruzam Falam as mãos que se entrelaçam Fala o arfar que se solta  Fala a pele que se cora E, assim,  as bocas silenciadas por um beijo.

e, em vez de pães, serem rosas

Repara bem. Houve quem conseguisse caminhar nas águas abrisse o mar com as mãos ou multiplicasse os pães e, em vez de pães, serem rosas. Como é  ardilosa a questão de nos cobrir com um pesado: «se houve alguém que conseguiu tu também consegues». Claro que, agora, sabemos bem  que, às vezes, é impossível  e não temos bem a certeza que, alguma vez, alguém tenha conseguido tal proeza mas repara bem agora, já não há nada a fazer, ficou assim determinado,  desde os primórdios,  que temos de saber lidar com este legado tão ambicioso e tão incómodo esta incontornável  necessidade de quereres ser tu  o próximo a ficar na história a caminhar sobre as águas a abrir o mar com as próprias mãos e multiplicar rosas em vez de pães. (obra de René Magritte)

ensinaste-me umas maneiras tão atrevidas

ensinaste-me umas maneiras tão atrevidas de assaltar muros para desvendar avenidas e é tão cedo que me levanto, cada vez mais cedo tão desperta para levar a cabo este empreendimento foi contigo que aprendi a andar de nariz levantado como quem não tem culpa de nada e explicaste-me em silêncio a diferença entre uma mão que ajuda e uma mão que mata o segredo é este: sentirmo-nos, agora, como dois ladrões em paz que encontraram finalmente a felicidade merecida.

ela

Tudo o que ela traz lá dentro não é mania nem doença. É beleza. Às vezes desesperada, é certo tantas vezes disfarçada de tristeza. Mas não confundas o teu medo com o que ela traz lá dentro.

num gesto que pressinta uma promessa

Espera para ver, ó esperança  e se o disseres num gesto que pressinta uma promessa poderás falhar à vontade

enfrentemos a época, tal como ela se nos apresenta

Tão longe uns dos outros - os próximos  e tão chegados de repente - os afastados. Como anda desconcertada - tanta gente  que não mede nem distâncias nem vontades... ( o título é de Shakespeare)

O que diz o meu corpo quando te escrevo

O que diz o meu corpo quando te escrevo que é a viagem o mais belo se me ofereço que é, de resto, o mais belo que tenho para te oferecer

a perspetiva da rola

Será esta a perspetiva da rola ver-nos assim tão pequenos aos dois e três de cada vez esgueirando-se por ruelas Será esta a perspetiva da rola ver tudo em grande plano, voo gigante como quem se habitua a enxergar tudo de uma vez

a querer de nós sempre mais

atirou-nos os cabelos ao vento para que o escrevessemos acordou-nos mais tarde do que era suposto para que nos lembrassemos que ele é a própria alma do universo a querer de nós sempre mais

quando um cego conduz outro cego, não caem os dois no buraco?

Não se sabe como foi com Van Gogh nem com este doutor que se deixou retratar. Terá sido ele a pedir-lhe e a pagar pelo tempo de espera? Ou terá sido o próprio Gachet a querer prova da aflição de uma época? Será este o retrato de uma amizade em decadência ou não seria demasiado o tempo de exposição para que o retrato se concretizasse?

não

É uma questão de princípios. Não gosto. Não peço. Não quero que gostes. Não peço que queiras. Não cedo. Não abdico. Já não acredito em conversões. Não me queiras regrada como santo Agostinho.

Onde sou a mim mesma devolvida Em sal espuma e concha regressada

as ondas  tão sonoras, tão mansas que atravessavam as casas e os olhos já a espuma os meus pés cobria só de as ouvir ( o título são versos de Sophia de Mello Breyner)

Está feliz. Tem obra feita. Sabe que é quase fim.

Está feliz. Tem obra feita.  Sabe que é quase fim. Por isso abotoa o casaco devagar. Como quem se fecha. Está em paz. Não gosta das casas grandes sem teto. Por isso resgata o chapéu à cabeça. Como quem se cobre. E se perguntarem que mais quer.  Sabe que pouco.  E muda a água ao afogado.  Como último refúgio para os seus males. É o ultimo troféu arrecadado. É, finalmente, o abençoado equilíbrio entre afetar e ser afetado. (a imagem é obra de Martinho Dias)

Sabes o que faço com a ternura que nutri por ti?

Sabes o que faço com a ternura que nutri por ti? Rego as plantas, aprecio as flores de todos os tamanhos, de todas as cores Adoro a chuva e o vento Ergo o rosto ao sol e fecho os olhos Sigo caminhando senhor do tempo Tão cheio de alma minha e tua E «para que tu me ouças as minhas palavras adelgaçam-se por vezes como o rasto das gaivotas sobre as praias»  (perseguindo Pablo Neruda em canção desesperada)

tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite

Posso guardar-te a ti mais um milhão posso com todos neste meu coração. (o título é um verso de Nuno Júdice)

a propagação da desgraça

Mesmo depois da advertência teimam em tamanho Cada vez maiores, mais exatas a crescer, a crescer à espera, sempre atentas Pacientes Uma sede Fornalha sem vagar e a mesma falta de ar Mesmo depois da advertência uma desgraça: a tua mão na minha A propagação da desgraça.

Desta vez para variar, a rua.

Estes por entre os quais me apresento viemos atestar a veracidade do drama que decidiu sair de cena. Neste palco onde tantas vezes se representa a comédia da vida com tão poucos cá dentro para tantos lá fora. Pois bem, desta vez para variar, está a sala cheia e o palco vazio. Vieram todos mudar de sítio. Caíram as máscaras e os adereços e, já sem holofote que os enalteça, a expetativa é quase nenhuma. As cortinas estão fechadas, nada de silêncios, todos ao rubro, nem um assento já disponível.  Desta vez, ser-nos-á dada a possibilidade de brilharmos todos e do lado de cá. Nós todos, sem uma única exceção. Nós, os atores de todos os dias. Hoje, não nos vamos esforçar por ver nem ouvir nada do outro em metáfora. Vamo-nos ver e ouvir uns aos outros. Tragédia ou comédia tanto faz. Nada de aplausos ou apupos, apenas o eco fulgurante dos dias banais. Nada de palavras ou sons ensaiados, apenas a alegria ou a verdade cruel do mais comum dos dias. Estes, entre os quais me apresento, viemos atest

Surge uma melodia suave e bela que cobre toda esta manhã

 Surge uma melodia suave e bela que cobre toda esta manhã.  Vem em abraço gigante alargando.  E o som fininho espalha-se e passeia por entre a multidão.  Agarro-a! Vestiu-se de manhã de verão, à vontade, em andamento lento…  100 batimentos por minuto.  Solta-se em leve piar que encanta os distraídos. E, agora, que vieste devagarinho, aproxima-te, desfilando serenidade. E, já agora, que vieste para me dar a mão, atravessa-me! E a música entra em mim e vai alargando… Acelerando Vai em crescendo! Ondulam as voltas em alegria, andamento rápido 150 semínimas por minuto. Ergues-te em êxtase na agora tarde lenta Rebombam batimentos, pancadinhas agudas no coração.  Pulsação forte, passo firme, passo gigante, corpo a corpo, ondulação serena.  Deixa fluir! Balança!  Música que faz sorrir. Arrepio, pé a tremer.  Os sentidos estão moles, mas alerta, a compasso.  Acelerando Vai em crescendo! Ondulam as voltas em alegria, andamento rápido, 160 semínimas por minuto. Calma!  E a música vai diminuindo

Ensina-lhe o lugar do afeto e do conforto

Ensina-lhe o lugar do afeto e do conforto pega nela ao colo bem juntinho associa-a a um tempo sem pressas E lê-lhe uma história! Devagar, mas com expressividade Bota-lhe sentimento! Se repetires isto muitas vezes vais ver a tua criança a crescer e a aprender a ser um leitor adulto  com o carinho de quem sabe acolher as palavras e as pessoas com bondade.

n u n c a m a i s

Um dia, alguém ou mesmo algo  que nos diz peremptoriamente Nunca mais. Ouviste? Nunca mais. Ponto final exato.

s u a v e m e n t e

Não faz barulho ao entrar Roça ligeirinho pé descalço Saltinhos saltinhos muitos e tudo Asas pequeninas pio dourado Nem se dá conta como nos sussurra  apenas como música que é  de seda  triunfando entre os dedos Não se sabe se azul celeste marfim verde sereno ou triunfo.

quais detentores de um poder - o de uma faca de múltiplas lâminas

A tábua pronta, a faca afiada, a cebola tão nua, descascada (nem sabes o que te espera...) está o avental atento (nem consciência tem dos estilhaços por vir) a toalha ainda descansa dobrada e a faca afiada, mais uns olhos.  E os olhos? - esses ainda não deram por nada...  sempre a mesma cena que te acorda para a espera do inesperado quais detentores de um poder - o de uma faca de múltiplas lâminas.  A cebola ao centro golpeada solta-se em espirro silencioso (nem sabes o que te desespera)  tem a palavra pronta:  - É aqui ou aí que te dói? como choras tu, afinal, se, afinal, sou eu a golpeada?  

Enquanto não houver paz, não te deixes em paz.

A natureza estrebucha por todos os lados. Exige aquilo que lhe pertence por direito e que lhe é negado. Demonstra por A mais B que não está em paz e manifesta-se de qualquer forma. Num ribombar angustiante, em ondas de exagero, cuspindo plástico, treme a terra e desfaz, faz surgir calor no frio e frio no calor. Nós. Fazemos de conta. E por muito que se renove a imagem do cardápio, andam as ementas tortas. Não sabe a nada o pêssego, está sempre podre a laranja, não há sequer tomate que saiba a tomate nem a hortaliça é tenra. O que nos vale é o abacate. Nós fazemos de conta que gostamos. Paga- -se gourmet e nem se bufa. Continuamos pretos e brancos, magros e gordos, lindos e feios, ricos e pobres. E somos iguais. Cada um, safando-se como pode. Um aperta, outro afrouxa. Um tem sorte, outro azar. Vence sempre o mais forte ou quem o aparenta. E ninguém ainda descobriu se a causa de tudo isto é mau olhado, castigo dos deuses, a implacável lei do retorno ou é tudo uma questão de incompatibili

a beleza é coisa tardia

é tal e qual como te dizia e nem poder posso  contar-te como é bom este sabor a amoras doces colhidas à beira da estrada um ror de roseiras bravas tempero terno desta idade de suaves matizes que me faz recordar-te como gostava de aparecer agora e dizer-te baixinho a música que compõe os meus dias

É ouro sobre azul

É um e outro que se juntam É um que surge e outro que pode mágico rigor de quem se quer bem uma palavra, um gesto minutinhos preciosos, passo a passo algo que se constrói aos pouquinhos e vai crescendo e aparece

Quando acontece a seco e nem lava - pior ainda

O naufrágio nem sempre é coisa de mares Quando acontece a seco e nem lava pior ainda nem sequer um último destroço a que te agarrares

esta invasora. uma devassa

É a luz a atravessar tudo esta invasora! Uma devassa! que me tem desafiado estes anos por inteiro uma força que quer que eu faça e me misture. É a luz a atravessar-me toda.

É uma inquietação desgraçada

 É um faz de propósito para me fazer feliz. É um não estar ao serviço e servir. É a pitada de nada que é tudo. É um momento Um. É um formigueiro que se estende de mim para ti. É um não medo. É um estar de olhos abertos e brilhantes. É um correr para buscar. É um chorar e sorrir  que faz parte do dançar. É uma exaltação. É uma coisa de pulmão. É um querer tanto tanto. É um estímulo para continuar. É um ar fresco. É um mistério que se vai desvendando. É uma sempre qualquer coisa que está para acontecer. É uma inquietação desgraçada. É esta a poesia da vida!

Só porque me delicio por teres chegado

Faz de conta que vens À hora dos mágicos cansaços! Faz de conta que (ainda) vens a tempo de me encontrares A salvo! Faz de conta que ficas de qualquer jeito, só porque sim E que te encanto! E eu farei de conta que vou Só porque me delicio por teres chegado.

Que frenesim te impele para algo?

A lembrança daquele frenesim miudinho que cresce dentro da gente e que nos impele, com uma vontade sincera e inexplicavelmente importante... para algo. Como quando éramos crianças e a simples ideia de que poderíamos correr por ali fora se transformava imediatamente no ato imediato de correr para a porta... e correr. Era a alegria do agir! Ou a simples ideia de que, no final do dia, seríamos presenteados com o melhor lanche do mundo- o da nossa mãe. Ou iríamos andar de bicicleta com o nosso irmão ou vizinho ou primo. Era a alegria do estar! E depois vamos crescendo. Temos muitos mais recursos, encontramos muitas pessoas, conhecemos tantos lugares bonitos e, no entanto, somos tantos a viver com tristeza e apagados. Não reconhecemos a saúde, a paz, o amor que nos rodeia. O que continuamos a fazer em prol da alegria do simples fazer? Com quem gostamos genuinamente de estar? Que frenesim te impele para algo?

mantém-se o ciclo

continua a mesma dança nas árvores em roda mantém-se o ciclo que tudo renova

e tudo nele brilha

Ai, Alcides, estás velho e sábio Ai, ai, sonhas, mas avanças Agora sabes que é de ouro a tua carcaça Levou tempo, mas valeu a pena Tens o céu por dádiva certa Não há mais ilusão que te atraia Podem vir mármores, espelhos ou prantos Ai, Alcides, estás velho, mas atento Crês na tua, não na deles, confiança Tens, agora, o dia, e não a lua, por encanto. (fotografia de Sophie Etchart)

e depois há o teu olhar

Enquanto aguardo por ti penso nos minutinhos últimos desta espera Obstinada e doce tarefa De quem se gosta e já não quer A despedida. (versos de Adélia Carvalho, no café da manhã)

O urgente, mas sobretudo o emergente.

Tenho tentado todos os dias um pouco mais E é nesta tarefa de infindável paciência neste assomo de curiosidade pelo que ainda falta que tento todos os dias um pouco mais Uma espécie de jogo que me encanta que me dá a possibilidade de acreditar na razoabilidade luminosa de todas as coisas As grandes, mas sobretudo as pequenas As sonoras, mas sobretudo as silenciosas As concretizadas, mas sobretudo as adiadas O urgente, mas sobretudo o emergente.

Chamar-lhe um figo

Ela juntou-se a mim ou fui eu que me encostei à sua sombra. Já nem sei. O que sei é que, quando dei por mim, tinha nas mãos estas doçuras que ela me dera. Ou fui eu que lhas tirei. Já nem sei.   O que sei é que há quem as devore inteiras. Eu prefiro pegar-lhes com as duas mãos. Com cuidado. São moles e são umas doçuras. Exigem cuidados. Ou esventro-as, tal a ansiedade de lhes meter a boca. Já nem sei. O que sei é que, quando dei por mim, já não era uma, eram quatro e todas despedaçadas. E há restos que ficam. O que sei é que há quem as devore, engolindo-as por inteiro sem deixar qualquer vestígio. Eu costumo deixar vestígios e já não consigo disfarçar felicidades.

Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

O passeio estreito sempre a direito baixa-se a cabeça duas ou três vezes antes de alcançar a porta de entrada.  Estão gigantes as couves e são portuguesas.  Há jarros por todo o lado tão brancos quanto os seus cabelos sobre a mesa de madeira velha com veios e riscos  são as rugas da sua dona.  Na parede, esticam-se heras, enrolando-se em serpentina nas telhas cor de telha.  Não há campainha nem sininho.  Neste pátio só penetra quem vem de conversa confiada sem necessitar de anúncio prévio.  Entra e fica-se, assim sem mais nada a ver a dona a estender as suas vestes- as mais íntimas com vagar, mola a mola em fio de arame.  Cheiro a sabão rosa e caca de galinha.  Roupa de lavado e promessa de ervilhas no guisado.  Está calor. Tanto calor. A mão e a cabeça pesadas.  As articulações rangem. Já não é a mesma dona que saía.  Agora espera o carteiro e o padeiro, sentada. E fica sombra à soleira da janela.  E pia o melro. E ronrona o gato, E ladra a cadela.  Está o forte montado. Um reino por

das águas que te trouxe até mim

magnífica fileira de dentes sãos que abocanham o último resquício do mundo que é sua pertença traz os olhos cheios de horizonte  o coração em caco transporta a pedra do caminho é atenção  é abraço é nariz agarra que é mão  pele com pele marca do tempo é lábio que sorri a tudo isto carapaça rígida sacudida de verdes e azuis em silêncio temperamental das águas que te trouxe até mim dorso por dentro que é luz e diz respeita que é natureza!

trouxa mocha

 Ó cabeça de vento,  tens mais olhos que barriga!

secreto privilégio

Há gente que é do ver  e esquecer Secreto privilégio dos afortunados que não acumulam nada Pudesse eu ser assim...

Além do sol, além do Sete-Estrelo

Podes ir.  É só querer.  Depois de lá estares vais ficar maravilhado e vais dizer.  Ainda bem que vim.  Porque quando nos dispomos verdadeiramente a ir,  parece que tudo se prepara para nos receber. (o título é um verso de Natália Correia)

Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si/ Cruzando-se em todas as direções com outros volantes

Precisamos que nos dirijam a palavra  para nos lembrarem que andamos vivos Porque a morte é algo que acontece por vezes e, se nos distrairmos, incorrendo em silêncios desmedidos corremos o risco de ficarmos de campa aberta e de rosa ao peito  com ar de quem não pagou a promessa. ( o título são versos de Álvaro de Campos)

Só é tua a loucura/ Onde, com lucidez, te reconheças.

De igual para igual  e desfeita a desvantagem impõem-se dois, três passos firmes. Passada a zona de rebentação atinge -se o mar imenso que se estende a meus olhos pesado, intenso. Não visto de longe,  mas de dentro. Para quem aprendeu a mergulhar de cabeça tardiamente. Este mar... ( o título é composto por dois versos de Miguel Torga)

É o elogio do norte. Deste Portugal virado para a Galiza.

«Afonso Henriques ter-se-á enganado...». Políticas à parte, falo-vos de lugares e pessoas com os quais me identifico. Sítios verdejantes e frescos (que muito se agradecem nestas ondas de calor), comida saborosa  regada a sorrisos, gente conversadeira a duas línguas, pontes e caminhos de pedra, ramadas que prometem, fontes e rios, aves e ovelhas, mulheres e homens de coragem, umas quantas que deixam história. E o mar. O que dizer de um mar verde e azul, praias lisas, dramáticas, de cheiros intensos.

ternura

voltar a andar insegura no passo como se fosse criança – mas eufórica pela novidade da probabilidade daquilo que o novo passo me traz

Surgindo para serem flores adoradas assim como as noites, as luas, o sol e todas as estrelas

Estou em modo de crer que a verdadeira magia está na terra. Terra escura, farta, generosa, abençoada! E nós… pés assentes na terra! Não um apenas…os dois pés em simultâneo Quatro pés se tiver de ser bem juntinhos a abrir uma pequena cova. E nós que sobrevivemos durante meses em líquido, juntemos-lhe água transparente, regeneradora e emocional Dizem que a lama faz bem à pele Chafurdemo-nos, imundos javardos! E já que temos a importância de um peixe, Toca a abrir buraco maior em forma de lago e deslizar nas águas salgadas do mar E, levantando voo, qual peixe voador, cruzemos os céus formando cruz Talvez nos passem multa de velocidade E seremos pássaros atestados de personalidade Que galgaram os céus em passada de avestruz E o que dizer destes botões que sobrevivem?… são fogo! Surgindo para serem flores adoradas assim como as noites, as luas, o sol e todas as estrelas e todos os doces amanheceres que terminam em pores de sol arrebatadores.

Aonde quer que vás.

Esta vida é viagem.  Não é chegada a lado nenhum nem a ninguém.  É aprender a apreciar a paisagem. E compreender quem contigo se vai cruzando. Aonde quer que vás. Vê. Sê.

36930

Era o dia ainda uma criança balbuciando frágil nos arbustos. Um rumor de ramos que agiganta os passos que nos guiam mesmo a custo. Foi então que a manhã ganhou em atitude desvendando-se em luz pelo meio-dia. Ganhou toda a praia teus gestos de espuma e alegria e, subitamente, ferveu a tarde em juventude. No final, rendeu-se o azul em cansaço e, de beiço caído, se adivinha já o sol-posto. Está o dia por um fio e treme a verdade os últimos raios tombando-nos leves e lassos. Não tarda nada ficará velho este dia trará a noite o tamanho e o gosto da eternidade.

E aqui me tens, Vida.

Têm sido desafiantes estes últimos meses que se me oferece a vida.  Uma mãe. Uma pessoa que tem de lidar com o facto de se achar na sua mais absoluta individualidade. Uma boa mãe nunca é individual, não sabe o que é um. Mãe que é mãe pensa por três ou quatro e nunca pensa em si primeiro. Um dia, repara que os seus amores cresceram e partiram. E cresceram tanto que ganharam terreno, vontade, horários próprios, caminhos que não desvendam. Pegaram na tesoura e trás!, obreiros implacáveis do corte radical do cordão. Afinal, havia egoísmo em todos estes anos e a mãe deixou de ser a figura principal das suas vidas. E este facto é dura constatação.   É então que passa a ser uma, outra vez. Uma só. Olha para si. Tem de pensar rápido. Não há vítimas, não há heróis. Há uma pessoa que já há tanto tempo que não olhava para si própria. Não há  grupo, já não é cozinheira ou enfermeira, não é a educadora ou taxista, já não precisa de se desdobrar. Tem todo o tempo do mundo. E está por si só. Por algu

52

há um raio que não me fere antes me abre o peito a cada esgrima

pretendia encontrar um amor

Pretendia encontrar um amor. Um daqueles que o ajudasse a pagar as contas Um que o ajudasse a cuidar do gato Um que lhe preparasse o jantar Um que o acompanhasse no natal, na páscoa e no dia de todos os santos na procissão da senhora das dores nos feriados possíveis e até no carnaval Mas nunca no dia dos namorados. (pintura de Henri Matisse)

a glória dos perdedores

uma a uma… as pessoas vão dobrando as toalhas… uma a uma um a um… envergam as vestes engelhadas penteiam os cabelos de sal recolhem-se os chapéus de sol expulsam uma a uma… as areias dos braços um a um… vão esvaziando o areal como quem abandona um campo de batalha de costas viradas para o mar… e vão ficamos sempre um e outro… resistindo à espera que não acabe o último banho o último sangue no horizonte a glória dos perdedores…

horas tardias

 que apesar do pó e pedra são as do coração a pulsar

Dog parking

É quando o cachorro escapa e nos achamos em desespero à sua procura que reconhecemos realmente o valor de cada esquina. foto de Edgar Lange