Avançar para o conteúdo principal

E lá vai o sujeitinho impune a mexer com as nossas consciências

Uma manhã de nevoeiro, fria. Cheira a torradas. Acabei de engolir o café da manhã e aqui estou eu, dentro do carro, pronta a empreender o mesmo trajeto de todos os dias. 

Todas as manhãs, mal dobro a esquina do muro de Vinhas da Índia, deparo-me quase sempre com o mesmo cenário. O trânsito automóvel aumenta e a estrada parece diminuir. Carros e camiões, às vezes tratores e motoretas. Uma azáfama!

E no meio da confusão, surge sempre a mesma figurinha de que me apetece falar-vos. 

Vai na berma da caótica estrada, correndo o risco de ser atropelada. É que os passeios são exíguos e mal engendrados nesta estrada nacional. São sete e quarenta e cinco deste dia de nevoeiro. E lá vai ele. É um indivíduo magro, aparenta ter sessenta e tal anos, poucas rugas, bastante cabelo grisalho, bem penteado, roupa clara, tão clara que parece exalar um cheiro a sabão Rosa nesta manhã de nevoeiro. Vai direito como quem cumpre um dever, apesar do passo descontraído. Eu penso até que, para ele, a rua está deserta e impera à sua volta um silêncio precioso. Leva um sorriso de folhas de árvores e pardais em poças de água. 

Ora, mas o que me leva a falar-vos desta personagem, com a qual me cruzo todas as manhãs, é um simples pormenor: um ramo de flores. Daquele tipo de ramos que não se vendem nas floristas. É um emaranhado de flores colhidas num qualquer quintal tosco. Umas quantas flores que apresentam um caule maior no meio de outras tantas pequerruchas. Não há grande arranjo, são simplesmente flores de várias cores que se colheram, se juntaram e ali vão acompanhando o movimento de mão, de quem as carrega vaidosamente. O homem passa por mim e eu a mirá-lo de dentro do carro. Ele não vê ninguém. O carro avança e já só o consigo enxergar pelo espelho retrovisor. Vai ficando cada vez mais pequenino e desaparece. Fica no meu pensamento. Para onde vai ele com aquele ramo de flores? Instala-se em ideia dentro de mim e eu deixei de existir. Ou melhor, talvez o tenha misturado ao que sei de mim. Todos nós temos histórias de flores para contar. E as mulheres têm sempre uma história de flores para contar (mesmo aquelas que, normalmente, não recebem flores). E o meu pensamento vai-se desdobrando. Há aqueles que as compram e as colocam numa jarra. Há aqueles que são alérgicos ao pólen e as querem longe. Há flores de plástico que fazem as delícias de alguns. Há quem só se lembre de oferecer flores aos mortos…

E aqui está um assunto que parece não ter interesse algum. Um simplório indivíduo, desfilando pela manhã com um ramo de flores na mão por entre a multidão… 

Enganam-se! Este ser quase insignificante provoca o caos nos seres que circulam nos automóveis a caminho do trabalho. Dá-lhes que pensar! Uns invejam: «Sortudo! Quem me dera ter tempo para passear logo pela manhã com um ramo de flores na mão e com aquele ar de quem vai voar!». Outros destilam revoltas: «É maluco!». Outros ainda suspiram: «Que romântico!». 

E lá vai o sujeitinho impune a mexer com as nossas consciências!




Comentários