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Cuidado! Os ouvidos têm paredes!


Ora, de um lado! O protagonista deste lado são todos os que habitam aquela rua. Um rapazito de onze anos que tem uma doença rara e a sua família que sofre. Um grupo de camponeses que se esfalfam a trabalhar e ganham pouco, mas são felizes. Um indivíduo de temperamento depressivo que passa a vida a gritar com os filhos. Uma dona de casa azafamada que se desdobra também em limpezas fora de casa. Uma elegante rapariga que faz torcer o pescoço aos que passam por ela. O merceeiro que decidiu instalar-se na mesma rua que o padeiro para benefício de todos que, assim, já não têm de se deslocar ao centro da vila. Há afazeres domésticos e profissionais que agitam esta gente, há amores e desamores, zangas e disparates, fofocas, exageros e suavidades. As casas foram construídas umas ao lado das outras, contíguas, portanto. São casas rasteiras de muros baixos e sem sebes. Há portões quase sempre abertos e todos se conhecem. À noite, as portas fecham-se e as janelas descem as suas persianas, mas todos adivinham o serão uns dos outros, de acordo com os sinais que vão transmitindo durante o dia. A roupa que estendem nas cordas dos quintais, o que dizem, o que trazem do merceeiro e a quantidade e o tipo de pão que vão buscar à padaria fazem deduzir o tipo de vida que todos levam dentro de casa, bem como pormenores sobre as reservas financeiras e algumas manias particulares. Quem gosta de quem, quem arma a barracada, quem tem problemas com os filhos, quem desespera por causa dos vícios do marido, quem está sempre pronto a sair e voltar às tantas, quem prefere o verde, quem gosta de novelas, quem está fora e quem está dentro. É este o espírito do público provinciano imbuído de um tom confessional e supostamente bondoso. Há uma entrega sem nada se exigir, concordam todos ingenuamente! Mas, por aqui, há paredes que dividem certas casas. São paredes com ouvidos! Dizem alguns mais reservados: não há necessidade de divulgar tudo, há uma reserva natural que preserva a identidade do nosso clã. E é, em nome deste recato, que alguns se esforçam por manter em sigilo algumas particularidades. Dizem os mais preocupados com o bem estar geral: convém manter os ouvidos alerta colados às paredes, não vá o diabo tecê-las! Uns policiando, outros resguardando-se vivem todos em comunidade, nada isolados, mas nem sempre em paz! 
Ora, do outro lado! Neste lado, as ruas estão estranhamente sossegadas…há carros, muitos carros, mas devidamente estacionados e gente que se recolhe apressadamente sem fazer barulho. Ninguém conhece ninguém! Há mesmo um individuo que vive ali há 12 anos e não sabe, nem quer saber, o nome do vizinho do terceiro esquerdo. As casas foram construídas umas em cima das outras,em espírito elevatório, portanto. São montes de gente acumulada e encerrada. Há portas centrais quase sempre videovigiadas. Ninguém sabe o que o outro compra! Vêm sorrateiramente com sacos recicláveis, entram pela garagem subterrânea com acesso direto ao elevador particular que os levam diretamente à sua toca.Não há roupas expostas, não há sinais nem provas de nada. É este o espírito do público civilizacional imbuído de um tom egocêntrico e com propensão para a apatia. Todos se compenetram e desconfiam! E, por aqui, há silêncios que dividem pessoas com ouvidos de parede. Não adianta gritar!

Mónica Costa
(pequena reflexão inspirada num poema de Ruy Proença e na pintura de Edvard Munch, O Grito)




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