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Cada mesa, sua sentença


Uma brisa. Uma manhã. Cheiro a fresco e molhado. Café! Olhos maravilha! Narinas ao rubro. Está fechado. O sítio do costume está fechado. Hoje, só hoje. Não há café. Fico ali de narinas ao rubro. Não se faz. Ouço burburinho Encerramento súbito do estabelecimento. Fico a ouvir. Grande estrondo. Grande escândalo. O insólito!
Na noite anterior, o insólito foi uma mesa. Mesa de ferro ferrugenta. Estava ali há tempo demais. Abandonada. Ladeada por quatro cadeiras de ferro caladas há tempo demais. Na noite anterior, foi o pandemónio. Uma mesa ganhou coragem! Colocou tudo em reboliço. Agrediu várias pessoas com suas quatro pernas que mais pareciam braços ou garras de monstro. Fez ferida grave a quem se aproximou. Voava e protestava como se fosse gente. As cadeiras tipicamente portuguesas ganharam balanço. Também elas foram em desatino. Agrediam, acompanhando a mesa. Eram quatro cadeiras possessas e uma mesa possuída! Ninguém entendeu o que aconteceu. Por uma questão de precaução, encerraram o estabelecimento.
Ali estava eu. Nada sabia. Local do crime. Tudo sereno. Uma brisa. Manhã fresca e molhada. Silêncio pós traumático. Algo enterrado no mais íntimo desperta. Ali estava a mesa parada. Quatro cadeiras pacíficas. A própria mesa, ela própria, sem mais, pronuncia algo. Limpadela de olhos.  Vai agora pronunciar um som. Sento-me numa das cadeiras. A mesa não perdoa a insolência e protesta. Não estava autorizada a sentar. «Fizeram-te alguma lavagem ao cérebro?». Não percebo! «Não venhas disfarçada de gente nuvem que eu continuo em protesto  passivo. ». Quem és tu? Achou estranha a utilização da palavra « Quem». Surgem saudades do tempo em que seria o centro das atenções humanas. Desfia o protesto agora passivo:
- No meu tempo, visitava-se o café. Não se ía ao café, vivia-se o café. Tempo de estar  na doce preservação e no adiamento do fim. Estar com tempo e com gente. Falar, dissertar. Mesa-café-tempo de tertúlias, ensaios, conjúrias, «complots», lugar de pactos, tempos suspensos por milagres. Foi assim a mesa dos Eças, Teófilos, Anteros e Pessoas. Vinte ou mais de cada vez em constante desatino de perspetivas. Confidências políticas, literárias e sentimentais. Olhares à mesa do café que eram dignos da mais bruta censura. Pobres mortais a correr atrás de ideais, personagens e sentimentos. Conversa efetiva e substancial. Partilha que deixava vestígios. E eu, mesa- café- tempo, impune, assistia a tudo e guardava os segredos e aguardava com a mais sublime sedução por outros detalhes. Paciente e orgulhosa, esperava o dia seguinte. O doce saborear da espera. Às vezes suspirava com as histórias, mas tão baixinho que ninguém topava. Cada mesa, cada sentença. Agora estou enferrujada. Nada de substancial há décadas. Conversa fiada, gestos merencórios, posturas curvadas, olhares cheios de nada. Uma vez, coloquei um cartaz «Aceitam-se comoções, ternuras várias, imensas claridades, ideias arrojadas!». Ninguém percebeu o cartaz. Morreu de velho. Enferrujei. Conversas de mesas virtuais atingem outras cadeiras virtuais. E eu ultrapassada! Só aparecem cabeças de repolho. São quatro cabeças de repolho por mesa que não comunicam. As pobres mesas em estado de choque. Vazio e silêncio instalado. Veem tudo de todo o mundo em segundos, exceto a pessoa que está ao seu lado na sua mesa de café. De lá para cá, começaram a vir sozinhos com um mundo dentro de um aparelho móvel que lhes impõe a mágica sucessão de imagens fabricadas para o deslumbre apático. Uma pessoa por mesa devidamente catalogada. Para a mesa 1, uma pessoa de plástico que está em permanente exatidão, sabe o nome das coisas, mas nada sabe, pensa que pode, mas depois não, vida bem feita que todos mudam. Para a mesa 2, uma pessoa pedra,  permanente imobilidade, parada pela ausência de um sorriso, com os olhos sem pestanejar. Para a mesa 3, uma pessoa gelo,  permanente agrura, sem referência, o não absoluto por imposição, estatuto que gera amargura. Para a mesa 4, uma  pessoa  vidro, permanente ansiedade, pouco confiante mas convive, abafa e abafa-se, sustém o ar, parece estalar.

Ali estava eu. Tudo sereno. Uma brisa. Manhã fresca e molhada. Silêncio pós traumático. Algo enterrado no mais íntimo desperta.
( a imagem que acompanha este texto é de um café muito agradável em Guimarães)

Mónica Costa




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