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Vê lá se ouves, vê lá se dizes: Pai!


São nove da noite do dia dezanove de março, está muito mais escuro do que habitualmente. A calçada brilha nesse escuro e os meus sapatos brancos calcam-na suavemente. Mais um passeio solitário pela noite escura, nesta noite mais escura do que habitualmente. Pontos de luz sobressaem nessa penumbra, são olhares de janelas. As janelas das pessoas que preferem a luz dos lares à escuridão dos passeios. E é, exatamente, neste momento,  essa luz que me atrai. Está branco em céu aberto nessas janelas de fundo de rua. Há uns anos, não percebia como se podia preferir a luz e o conforto dos lares à escuridão mágica da noite…
E o toc, toc dos meus passos continuam firmando a calçada. São os únicos ruídos da noite neste silêncio de rua estreita. Aproximo-me de uma janela, espreito por uma fresta e ouço riso perfeito em festa, cansaços em movimento, gritos que se escapam em leitos alerta atrás desta parede que me tapa. Por momentos, até me senti uma casa.
Para mim, o final do dia é sempre esta calçada cujo único ponto branco é o dos meus sapatos. Sapatos rotos de tanto caminhar e a minha camisola tem nódoas, mas, como está mais escuro do que habitualmente, nada se nota. Os sapatos brancos foram comprados, há muito tempo, com um propósito: a primeira comunhão do meu filho Afonso. Todos brilhavam, nesse dia, eramos todos pontos brancos em casa branca de fim de rua.
«- Amanhã é o dia do Pai! », relembro, em surdina, o Afonso, nesta janela de silêncio de rua estreita. Neste momento, o Afonso terá vinte anos completamente celebrados. Da última vez que o vi, teria dez anos. Era um rapazito perspicaz, bastante falador, tinha voz de rouxinol e gostava de canários. Adorava andar descalço! Quando tinha tempo para ele, levava-o a ver insetos, caçávamos grilos e borboletas. E vinha tudo misturado na mesma caixa. Depois, chegávamos a casa e ele libertava a bicharada.
Agora, o meu aspeto é de pobre que não se endireita. Na maior parte das vezes, cheiro a mofo e a tédio e o absurdo é que, farto de cansar-me, espreguiço-me ainda mais e, estupidamente, não penso em nada do que a gente bem vestida antevê. Vivo na rua, no fim da rua estreita, há muito tempo atrás da magia do escuro. A noite é a minha parte preferida, deambulo à vontade no silêncio, mas admiro janelas.
Há escolhas que se fazem que são verdadeiras tragédias, principalmente, quando não se opta pelo melhor que a vida tem para nos dar: o Amor de uma casa branca em céu aberto. O que eu daria para estar dentro dessas janelas de luz a ouvir o meu filho Afonso: «Hoje, é o dia do Pai!».
Mónica Costa

 (Quadro de Quint Bucholz)





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