Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de 2024

caminham filados na intenção

o jovem casal segue o som do apito estridente da velha carruagem incrustados de luz caminham filados na intenção

medes-me a cintura num abraço

Tenho um vestido azul claro abotoado manga em balão a meio braço três voltas de tecido a meia perna. Prendo-te a este vestido por um laço tu medes-me a cintura num abraço.

sidero

são estrelas as que vejo não de-sejos essas são as que desejas que deixaste de ver que esperas a céu aberto não as que vivo todos os dias: as que vejo as que escrevo as que tenho (O verbo desidero vem da palavra sidero , que significa «relativo aos astros», ou também «conjunto de estrelas». Sendo assim, de - sidero significa «ignorar as estrelas», ou também, «deixar de ver as estrelas», em seu sentido astrológico. Se as estrelas na antiguidade eram o elo de ligação entre os homens e os deuses, então desejar significa ficar à deriva, à mercê, nas rodas da fortuna, deixar de guiar-se pelas mensagens divinas. https://razaoinadequada.com )

tantos e tantos! coitados! - dizes tu

há tantos e tantos neste mundo: há os que esperam pela hora da sorte,  e os que curtem as benesses do azar, há gente jovem, mas envelhecida há gente velha de alma jovem, há os sozinhos e os acompanhados,  os que veem tanto, mas nunca entendem nada,  e os que topam tudo à distância. tantos e tantos! por este mundo fora há os que sorriem e os que choram, os simples e os complicadinhos, há gente feliz com lágrimas, os que sorriem por não saberem chorar e gente tão seriamente feliz. tantos e tantos! somos o mundo há os de fora que entram e os de dentro que se esgueiram,  os que andam evitando a morte, escapando na luta há os que vivem e os que sobrevivem os dos pedaços de vazios e ódios instalados  há os irremediavelmente desastrosos  ou os fabulosamente imperturbáveis há os que se sentem puros e os que se pensam pecadores há os que acham que só acontece aos outros  há os que vivem de ausências e os tão cheios de multidões há os que se sufocam armadilhados...

Sol

permitiu a t’shirt que entrasse por um rasgo de tecido lasso o Sol sim, hoje, deu-me o sol nas costas e no peito acolhi-o o Sol de rosto alevantado e que bem me soube e que mais houvesse

!

um ser humano entretido com livros é um ser humano que não chateia   - como diria o meu amigo mal parado -

ele deixa de fora as partes mais feias do drama

admirem-no que ele gosta mas não façam muito barulho sejam discretos  não queiram ser o que ele almeja (título de Tatiana Faia)

partes do mesmo todo, um mar de cor pelo chão

 uma chuva desvairada, cansada de molhar ao de leve,  atira-se contra as vidraças por querer à força dizer que cá está  sentindo-se iluminada, vem acompanhada pelo vento par perfeito para uma inquietude invisível separa-os um mundo de fúria e de suor,  uma espécie de combinação de canto e grito bater feroz de oficina ao ar livre folhas em rodopio por todo o lado,  ondas amarelas e vermelhas, verdes em musgos qual escarcéu,  um marulhar de versos pelo chão e as nossas bocas e olhos bem abertos, absorvendo tudo em redor partes do mesmo todo, um mar de cor pelo chão embora o amor em caos, fico apaixonada por este vento e por esta chuva, pelo ar,  pelas pequenas belezas da natureza,  pela eterna música e por estes pássaros que teimam em trinar em plena chuva

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

assentando o cu neste estrado duro miro lá mais para a frente o despontar de ouro no horizonte ( a escultura é de Fernando Botero e o título é de Ricardo Reis)

há sempre um que insiste

entre nós e nós há um mar de   mas um rio cujo caudal separa quase cheio talvez fosse fácil atravessá-lo     mas um caminho desempedido quase a meio talvez fosse simples a chegada    mas uma casa tão limpa à porta fechada talvez fosse o gesto breve e o convite    mas um cofre de palavras quase prontas e guardadas talvez fosse música para os ouvidos   mas entre nós e nós pequenas pausas retêm o passo entre nós e nós, todos da mesma laia, há sempre um que insiste    mas há sempre outro que não quer e desiste

rastilho

admirar-te deste ponto é perceber-te as raízes em esplendor por aí acima

será a ágil indolência de sucessivas aberturas em que veremos as labaredas de um outro sentido

aquele mesmo poema desde sempre do mesmo jeito por hábito um dia reparas nele com outros olhos de ver há que reaprender a olhar ele é o mesmo poema de sempre mas nem imaginas o quanto mudou aquela que o lê ( o título é de António Ramos Rosa)

Está uma tarde parada com uma chuvinha que chora

Está uma tarde parada com uma chuvinha que chora Ruas quentes agora onde ainda ferve o asfalto Silêncio absoluto. Umas pingas cortam-no em instantes ritmados  batem na chapa torta mesmo aqui ao lado um pingue – pingue que parecem lágrimas espaçadas Estamos todos confinados.  Menos aquele gato. Gato vadio que tem direitos que eu não posso. Passeia imune na rua por cima do telhado de chapa Uma chapa torta mesmo aqui qual fronteira farpada que recebe as pingas que cortam este nosso silêncio e serve de trampolim a este gato vadio que insiste  Foge o gato.  Volta o silêncio absoluto.
no lá longe há sempre  algo de cativo faminto ou furtivo

fugas

A nossa noite ontem à tarde foi a manhã por que esperávamos David Mourão- Ferreira

ponto de orvalho

6.30.parecia ainda madrugada.  tão sem boca. silêncio absoluto.  aliança concertada. céu e terra. manto cerrado.  um olho aberto. outro fechado.  linha de horizonte simulada.  o perto se faz miragem. e aos poucos.  tímido ponto de luz. e é vê-lo surgir.  envolto e velado. o dia. em ponto de orvalho.  

e entro nesta que sou de verdade

sacudo a poeira da estrada deixo o mar alto à entrada limpo um e outro pé da deriva dou duas ou três voltas à chave respiro fundo está alma servida e entro nesta que sou de verdade

ali, à porta da Barbearia Veneza

Os Aliados, com chuva, é avenida que nunca mais acaba. " Ó menina, chove que deus a dá!"- soa a voz de dentro. Foi por este motivo que cortei à esquerda, na esquina do Hotel dos Aliados, e entrei no número 37. "Fique  sabendo que esta barbearia foi ponto de encontro dos cavalheiros da cidade. Em quase todas as manhãs chuvosas como esta, vinham cá o Tino Coçado, o João dos Baixos e o Finório de Louredo. Uma vez até veio a Alice Tripeira... ganhou coragem e adentrou-se por entre todos eles, pedindo um corte curto e de risca ao lado. Com mais cuidado, reparo no espaço de onde vinha a voz de dentro. Subitamente, até parece que me vem ao nariz um cheiro a aguardente barata em balcão de mármore, parece ouvir-se aquele rouco soar a relato futebolístico de tardes de domingo. E foi como se, de repente, a mercearia da esquina da rua da minha infância abrisse portas e eu assistisse, impávida, ao desfilar de latas de atum, caixas de Omo e vários tubinhos de pintarolas encostados uns...

às pestanas irrequietas diante do sol

Podes dar-me a tua mão sempre que quiseres Trago os braços estendidos para ti ( o título é de Fernando Della Posta)

as tuas noites vão ficar bem doces

O que atrapalha não são as pessoas de bem com a vida. Essas contribuem para o bem-estar geral, incluindo o meu. As de bem com a vida partem em paz por estarem bem na vida e, simplesmente, se afastam. As de bem com a vida são as que se aproximam ou se mantêm por perto, acrescentando sempre algo de positivo à vida de todos os dias. As de bem com a vida já são poucas, mas são boas. Puxo-as para mim com os dois braços.  O que tem atrapalhado são as pessoas de mal com a vida. Revoltadas. Não conseguem. Não querem. Isolam-se, metem-se na concha. Ladram muito. Muita lábia, fraca mandíbula. Escudam-se. Só veem defeitos. Não vivem, sobrevivem. E não gostam dos que têm a coragem de viver. O pior de tudo, como diz José Carlos Barros, é que consideram que  O problema sempre foi o das más companhias: são os outros que corrompem. Por nós, cada um de nós, o mundo não teria uma nuvem de cinza ou um único muro erguido a desenhar com alvenarias as fronteiras e a intolerância. O problema do mund...

quando nos deparamos com objetos tão límpidos, ficamos sempre comovidos

e porque, às vezes,  são flores cada pétala uma letra todas em uníssono uma palavra e às palavras tantas um trinado que as declama em todas as cores será que é por existir dentro de nós uma qualquer brancura imaculada e inviolada que, quando nos deparamos com objetos tão límpidos, ficamos sempre comovidos? (os últimos quatro versos são de Han Kang)

A praia é a minha praia o ano inteiro.

  As praias vazias e frias são dos corajosos  ou dos tristes e solitários ou dos descontraídos ou simplesmente dos que não desistem do mar  mal ele nos acena com um deixa-me em paz. As praias no outono têm personalidade às vezes, brindam-nos com um sol inesperado outras regalam-nos com um nevoeiro cerrado outras ainda com a chuva, somos água na água. As praias no inverno exigem que resguardemos a chama trémula no côncavo das mãos. As praias vazias são mais apetecíveis, deliciosas  não cheiram a protetor solar exalam sargaço, vida, atrasam colapsos. A praia é a minha praia o ano inteiro.

Quer e não quer

Quereres. Faz apelo aos novos hábitos, mas apenas quer os velhos costumes. Quer virar a mesa ao contrário de patas para o ar para que lhe reconheçam autoridade, mas apenas andou a vida inteira sem saber viver. É um quer e não quer. Quereres. E agora lembrou-se que urge recuperar o tempo perdido e quer. Pragueja, mas sorri. Sorri bastante, o indeciso. Treina todos os dias poses sorridentes como quem tem de provar que quer o que não quer. Conserva bolores, simulacra bondades. Finge paciências. Abafa impulsos. Umas vezes quer, outras não quer. Desperdiça-se em quereres e não quereres. Vive sem vontades.

Dá-me ares

Tens a cabeça em desalinho. As figuras saem-te impercetíveis. E tudo em volta num redondo. Um labirinto. Por entre sombras e alucinações, escapam-se letras das palavras e palavras das frases. Tudo numa caligrafia desgraçada da qual se subentende o que se pode. Uma linha temporal só tua. Os pronomes tomaram o lugar dos nomes próprios. Tens os olhos no passado. Do futuro quase nada. O horizonte fechou-se. Ficaste muito estático a olhar para mim e disseste: - Dá-me ares…

Sentes como, de tanto caminhar sob este chapéu de chuva escarlate, as emoções estão ao rubro?

Já viste como são da cor das árvores os meus cabelos que, ao som da chuva que cai, esvoaçam em farripas despenteadas? E sentes como é bom andar por esta rua, nesta tarde tão molhada? E vês como ando de olhos vivos, dóceis ainda, tão prontos na procura? Já reparaste como a cor se espalha e nos faz notar? Vermelho, verme, tinta, encarnado, carne viva? E o que dizer destas faces coradas? Sentes como, de tanto caminhar sob este chapéu de chuva escarlate, as emoções estão ao rubro? Perto de ti, tudo inflama.    

Ficamos quites.

Tirei-o pela pinta. Ele tirou-me as medidas. Ficamos quites.

Poesia

 uma pulsão inata no sentido da verdade e da beleza (Lawrence Ferlinghetti)

beautiful day

Foca sorrindo.

e entra livre no poema...

Ponde os olhos na insolência desta multiperna barbuda neste assalto inesperado desta contorcionista tricolor. Reparai neste deslizar arrojado de quem arrisca ser esmagada e mesmo assim continua. Lenta e descontraída escalada de quem se faz dona deste caderno  como quem desafia o Everest e entra livre no poema reclamando para si própria estatuto de primeiro verso.

Provocam-nos tão quentes e tão cheirosos em dia frio.

Eu sei que ainda há pouco era verão, mas este vento impertinente zune ali fora como se fosse inverno. E chove, não a potes, é verdade, mas o suficiente para nos deixar num estado de tal molenguice que até dói. E este registo meteorológico é ponto de partida para vos falar de algo extremamente simples como o pão. E de um sítio aprazível como a padaria. Há algo de branco e fofo nas padarias que me causa uma espécie de conforto em dias como este. Tudo se mistura: o som do vento, a água da chuva que esfria os pés, o aroma a café que nos incha as narinas e o cheiro contagiante da última fornada a espevitar todo o nosso sistema olfativo, parente próximo do sistema afetivo. Neste contexto sinestésico entram em cena os pães, resvalando aos trambolhões para uma qualquer montra envidraçada. Fazem-se. Deixam-se admirar. Provocam-nos tão quentes e tão cheirosos em dia frio. E do caminho que fazem do forno à mesa há apenas uns centímetros de paz. Quando nos chega este pão às mãos, depois de ter pas...

Ando pensando que não em mim!

Ando pensando que não em mim! Aqui estou eu, agora, desnudada, metade de mim filha, a outra metade de mim mãe Saltam da minha boca palavras com carne e palavras de sangue com sangue  que sustentam a ternura Lábios de filha prontos para beijos mansos e ternos em pele enrugada  ou lábios de mãe para beijos tontos e repenicados em pele jovem e lisa Um braço amparando a fragilidade  e o outro a controlar a pujança e a rebeldia Cabem no meu colo o corpo débil e mole da minha mãe o corpo cada vez mais musculado do meu rapaz gigante  e o corpo elegante e harmonioso da minha mulher bela que ajudo a crescer Tenho cheios os olhos molhados de ternura  E vibra no meu peito um coração cada vez maior e mais apertado E ganho todos os dias pernas rijas para seguir em frente por caminhos onde nada me detém,  seguindo rigorosa e atenta  Aqui me  têm, meus filhos e minha mãe, como Mulher enriquecida pela força maior que é o Amor de Mãe!

mistério ainda por desvendar

nunca pensei que ficasses assim tanto tempo cá dentro, vejo-te às vezes fecho os olhos para não ver, mas mal os fecho, aconteces -me a conclusão é óbvia: passaste para o lado de dentro andas às voltas do lado de cá, provando que o tempo é instância enganadora

A partir de certo ponto, não se pode voltar atrás. É este ponto que é preciso alcançar.

Bendito o que nos coloca perante o assombro do insignificante, aquele que nos desvenda o seu deslumbramento. Bendito o que partilha a beleza dos sons e dos passos de dança. Bendito o que nos inspira com a sua voz, aquele que prefere as horas tardias, fora do expediente entediante. Abençoado quem nos brinda com a sua boa disposição e ânimo e que nos faz acreditar que viver é tudo isto. ( o título é da autoria de Franz Kafka)

tem de ganhar corpo para provar que existe

o vento imaterial dá, sem pedir licença, som e movimento à cortina desta sala é um fogo que lhe dá e a cada balanço intenso bailado ritmado responde à chamada e incha sabe que o vento insiste tem de ganhar corpo para provar que existe

terias coragem de a cumprimentar?

apresentou-se fresca a neblina tão menina a percorrer espaços de outrora e se de repente te aparecesse aqui e agora tu menina qual neblina terias coragem de a cumprimentar?

Há um exército de mulheres que limpa o mundo

Ela. É a minha condição, portanto, percebo-a.  Ela. É esforço permanente. Ela é irónica, subserviente, apaixonada, agressiva, tímida, rebelde, simpática, sufocada, combativa, doce, revoltada, alegre, monótona, elegante, magra, anafada, com dentes, sem dentes, musculada, flácida, inteligente, parva, histérica, acabrunhada, conversadora, reservada, mãe, tia, avó, filha, prima, amiga, confidente, inconveniente, intolerável, compreensiva, generosa, egoísta.  Ela é demasiado. Ela limpa o mundo, expurga-o, areja-o, sopra-lhe o pó, desinfeta. Ela é vermelho vivo, desassossegado, doloroso, sentido.  Uma dessas elas escreveu «É possível, dizem-me algumas vezes, que não conheças nenhuma que seja uma merda? Conheço, sem dúvida, a literatura está cheia delas e a vida de todos os dias também. Mas, todas as contas feitas, sinto-me seja como for do lado delas.» ( a citação é de Elena Ferrante, o título é de Sara Barros Leitão)

disparo à queima roupa

não fica mais de um minuto assim em pose vaidosa solta trinados que escuto  e eu sem pio cautelosa testando-me a destreza de um disparo à queima roupa

desvairados girassóis

era a estrada eram faróis em pura velocidade desvairados girassóis rasgando à noite metade o que dizias depois era memória ou verdade só sei que prendia os dois numa única ansiedade nem cobardes nem heróis na perdida liberdade amor, amor que corróis tão frouxa a nossa vontade ó sem razão, como dóis na sua atroz qualidade e te rasgas nos faróis em louca velocidade poema de Vasco Graça Moura

és o meu mar

 Não tem nada que saber. É o Mar! Vais lá, aprecias, olhas e vês. É o Mar! Usufruis. Respiras. Cantarolas. É o Mar! Há sol. Há vento. Há pôr do sol. Há estrelas. É o Mar! Páras. Apontas. Sorris. É o Mar! É o Mar! Magnífico. Imenso. É meu. É teu. É nosso. Vais lá, limpas, não sujas. Respeitas! É o Mar! Quando regressas, podes dizer: -Esmerei-me! É o Mar! É o Mar! E podes sempre voltar!

nos cabelos algas ou fenos das areias

qualquer dia nascem-me nos cabelos algas ou fenos das areias qualquer dia sou do lugar dos versos renomeio-me centáurea das dunas qualquer dia pinto-me de mar espelhando azul qual cardo marinho qualquer dia crio raízes e fico caladinha qual cordeirinho das praias

Adão e Eva no paraíso

Aquele azul ao fundo parece uma provocação... E é! Ó pequena iguaria do dia! Que me insufla o peito de maresia.

um ponto final

Um ponto final é um círculo fechado, sentado ou em pé. É um bicho venenoso que mata uma frase com a própria bicada. Um ponto final não tem vergonha do seu corpo porque fica bem em todas as fotografias. É um asterisco sem barba. Por muito que tente passar despercebido, um ponto final é um elefante entre duas frases. É uma moeda pousada, em desuso. Um símbolo que chega sempre tarde. Um atalho para casais desnorteados. O ponto final foi inventado por uma pessoa que gostava de mandar calar, mas não gostava de escrever. O ponto final pode ser branco se a tela for escura. (texto retirado de  https://www.instagram.com/mal.parado/)

silly season

Garanto-vos que havia um urso branco sentado na rocha à nossa frente a fazer-nos lembrar que o planeta não está grande coisa e que, à nossa esquerda, havia quatro espreguiçadeiras com toldos a fazer lembrar as tendas dos índios do velho faroeste com gente esticada ao sol e pouco preocupada com as alterações climáticas. À nossa volta, as mesas postas como se fosse domingo em casa da mãe com café a quase três euros e, nesta cabeça de nuvem, um chapéu de palha emprestado para compor este cenário límpido que, nesta foto, não serve para mais nada a não ser relembrar-nos que não há luxo mais saudável que é a vontade de usufruirmos.

repete as sílabas/ onde a luz é feliz e se demora

tenho a boca pronta de tudo para te contar  - agora nos olhos um clarão, do peito escorre água abraço é palavra que não deixa ir embora e tudo renasce diz   a-bra-ço assim palavra silabada para que demores (o título são versos de Eugénio de Andrade)

i'm a sports lover

um olhar deambulante pede corpo como quer traça os pés itinerâncias dá ao peito mais poder dá-te a mão e pede urgências vira a esquina radiante

pela boca morre e não é peixe

enquanto os barbos e as  taínhas nadam airosas por entre o lodo andas tu a saber de mim fizeste bem em esquecer como se lança o anzol as taínhas e os barbos agradecem teres deitado por terra o jogo do pela boca morre e não é peixe

há sempre uma aguarela soberba

citarei um escritor famoso para além de cada túnel  - diz ele meticuloso - há sempre uma aguarela soberba - fim de citação –  como são mágicas as cidades e as gentes, como tu e eu,  que nos descobrem

a branca da areia

a branca da areia que se ajeita neste mar de azul intenso ondas e ondas que deslizam rasteiras ui! que delícia! e eu passo a passo troto-as nem sei se ser de escamas ou de asas é que este corpo é fogo aceso que o aceita mosaico de verdes e azuis que me invade abro os braços e deixo-me tombar  em cama gigante onde a espinha se alivia de todo o peso e sou umbigo ao céu rendida ancas em silêncio, fêmea esculpida

A não compreensão é forma de deixar acontecer, da possibilidade de uma experiência

O olhar estrábico fixa-se na cana do aquilino nariz.  São tão pequenos os olhos para tão apurado olfato.  É mais pesada a cabeça que leves os pés, tão assentes no chão.  Não como quem se dispôs ao caminho,  mas como quem se resigna a um cansaço.  Constituiu-se ela própria como montanha mágica,  convidando a que a subam, numa atitude displicente, descarada.  Não há mãos que se exibam,  é exageradamente centro de boca silenciada, mas rei na barriga. Tiro certeiro. ( o título é uma frase de Thomas Mann)  

E o extraordinário suavemente tomará conta das suas vidas

Não peças aos teus filhos vidas extraordinárias.  Mostra-lhes!  Um fruto maduro ou a delícia de um final de dia de verão. Como se deve chorar no momento certo ou rir ou falar ou desabafar quando tiver de ser. Fá-lo sentir o toque de uma mão. O lado encantador dos dias. E o extraordinário suavemente tomará conta das suas vidas. (ouvido algures…)

eclipse

Se assumimos a verdade, o mais provável é sermos castigados se deixamos brotar o que nos vai no coração, tomam-nos como uns fracos se estamos com vontade de chorar e choramos, diagnosticam-nos depressão se manifestamos excesso de felicidade, talvez seja bipolaridade e quando tocamos na ferida, somos de uma crueldade atroz! É tão difícil ser correto, direto e genuíno! É muito mais fácil anexarmo-nos a uma morna errata temporária. E é assim que se vai aperfeiçoando a hipocrisia!

mas era digna de reparo nesta rua dos Bobos, número zero

levantou teto, levantou ferros deixou o céu a descoberto bateu com a porta, deu à soleta soçobrou esta janela aberta já não é casa de uma só parede é entrada de céu, mergulho de prancha cruzam-na as aves (inspiração: A casa de Vinicius De Moraes)

bela e altiva, dádiva generosa

esta é a força com que a agarro é minha e passa no exame e agora a ouço como respira para dentro bela e altiva, dádiva generosa morada a que recorro sempre  que quero restabelecer o equilíbrio

um tempo em arrepio

É sempre um prazer renovado percorrer este espaço casa, lugar de sorrisos e de boas energias.  À porta de entrada as quatro que afinal são três: inverno, primavera, verão e verão. O calor repetido. Entra-se e sente-se uma voz que convida à deambulação. São as árvores frondosas que se esticam em desmesurado abraço. E, por dentro delas, vou-me encaixando. O tulipeiro e a tília, as camélias e a magnolia grandiflora, as palmeiras e a araucaria. Tudo em tamanho gigante. E depois há os pombos, os patos, as galinhas e os pavões que rasgam o silêncio do espaço com os seus pupilares estridentes. Os bancos, as fontes, sete flores de lótus para uma só coluna. Trilhos de raízes que conquistam este chão e uma paisagem que se estende muito para lá deste espaço. E no meio de toda esta beleza, há uma varanda a unir eternamente os distantes: muito para além deste alpendre, muito mais do que um rio atravessado por uma ponte e ladeado por casarios. Uma mulher e sua corça. Um tempo em arrepio.  U...

não deixes que a vida toda te vença

este dia é já cheio e as flores bonitas brinca o sol com este vestido às riscas é tarde que transborda e é dourada e arde  é já tanta a tarde tarda a noite ainda diz que a vida é brava porque toda não deixes que a vida toda te vença dá-te apenas por vencido no fim deste dia cheio nunca para com todas as manhãs e noites claridade que se adivinha sombra que se sonha

é rua que nos leva a peito

vou-vos falar do verão e das ruas: no verão as ruas ganham outro espaço e nas ruas o verão ganha outra luz e eu por dentro deles ganho outra cor é a simbiose perfeita qualquer branco ou azul ou amarelo me cai bem e vivo os dias por fora soa a cigarra, o sol toca a pele – é verão na rua e em mim pousa-se o lombo na terra e ganha-se outro ar  abre-se as axilas ao vento e ganha-se asas cheira-se e de peito inflamado é rua que nos leva a peito

era o rio agora mar

Lá vai a Catraia com sua vela tipo bastardo a aproveitar-se do vento. Estão lançadas as redes ao mar e de olhos postos nos boréis só resta esperar que indiquem ordem de alar.

depois de ter beijado demoradamente a mão que elas lhe estenderam

quando dizemos «as mesmas coisas» há um tom com que as olhamos quase pesar, quase injustas e, no entanto, ali estão sempre «as mesmas coisas» a insistir nada possessivas imperiosas só sendo tão nossas

100 mg de vitamina C para adultos saudáveis

As laranjas são ricas em vitamina C. E eu, às vezes, como-as. Compro-as. Não as planto. Não tenho terreno para laranjeiras. A minha avó teve. A minha mãe também. (E que saudades tenho do tempo em que subia laranjeiras e comia laranjas que eram apenas sabor, sem ponderar se eram ricas em vitamina C.) Mas por que motivo são as laranjas motivo deste texto?  Por me ter deparado com uma casa coberta de laranjeiras. Cenário magnífico e digno deste registo fotográfico e escrito. Decidi, entusiasmada, assaltar uma dessas árvores e comer uma laranja à beira da estrada. Nem sei se as laranjeiras eram da casa ou da estrada. Minhas não eram. Mas esta que comi passou a ser minha. E se a laranja que comi tivesse sabido bem, teria sido um momento quase divinal, quase musical a fazer lembrar os tempos em que subia laranjeiras.  Ora, quem olha para a fotografia que acompanha este meu texto ficará a pensar que as laranjas eram mesmo boas. Mas nem sempre o que parece bom é bom. E neste caso era ...

e, como não rezo,

sou otimista pela minha indissociável união com o ótimo e, como não rezo, com certeza não irei para o céu

coisas invisíveis que chegam a algum lado

a luz da tarde dará forma ao sorriso quando as receberes