Os Aliados, com chuva, é avenida que nunca mais acaba. " Ó menina, chove que deus a dá!"- soa a voz de dentro. Foi por este motivo que cortei à esquerda, na esquina do Hotel dos Aliados, e entrei no número 37. "Fique sabendo que esta barbearia foi ponto de encontro dos cavalheiros da cidade. Em quase todas as manhãs chuvosas como esta, vinham cá o Tino Coçado, o João dos Baixos e o Finório de Louredo. Uma vez até veio a Alice Tripeira... ganhou coragem e adentrou-se por entre todos eles, pedindo um corte curto e de risca ao lado.
Com mais cuidado, reparo no espaço de onde vinha a voz de dentro. Subitamente, até parece que me vem ao nariz um cheiro a aguardente barata em balcão de mármore, parece ouvir-se aquele rouco soar a relato futebolístico de tardes de domingo. E foi como se, de repente, a mercearia da esquina da rua da minha infância abrisse portas e eu assistisse, impávida, ao desfilar de latas de atum, caixas de Omo e vários tubinhos de pintarolas encostados uns aos outros.
Continua a voz lá dentro, "aqui, só se corta a tesoura e barbeia-se a pincel." Nesta sala, os ponteiros do relógio parecem mover-se ao contrário. "Quem vem traz tempo para conversar. E se demorar mais um bocado, até tem quem lhe engraxe os sapatos."
Há pessoas que resistem com afinco à passagem dos tempos. Serão "as mesmas, e nos mesmos bairros hão de viver, nas mesmas casas ficará de neve o teu cabelo". Ali, à porta da Barbearia Veneza, esperando a chuva passar, senti-me uma personagem da série televisiva "Conta-me como foi".
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