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Mensagens

Vê lá se ouves, vê lá se dizes: Pai!

São nove da noite do dia dezanove de março, está muito mais escuro do que habitualmente. A calçada brilha nesse escuro e os meus sapatos brancos calcam-na suavemente. Mais um passeio solitário pela noite escura, nesta noite mais escura do que habitualmente. Pontos de luz sobressaem nessa penumbra, são olhares de janelas. As janelas das pessoas que preferem a luz dos lares à escuridão dos passeios. E é, exatamente, neste momento,   essa luz que me atrai. Está branco em céu aberto nessas janelas de fundo de rua. Há uns anos, não percebia como se podia preferir a luz e o conforto dos lares à escuridão mágica da noite… E o toc, toc dos meus passos continuam firmando a calçada. São os únicos ruídos da noite neste silêncio de rua estreita. Aproximo-me de uma janela, espreito por uma fresta e ouço riso perfeito em festa, cansaços em movimento, gritos que se escapam em leitos alerta atrás desta parede que me tapa. Por momentos, até me senti uma casa. Para mim, o final do dia é sempre est

Cada mesa, sua sentença

Uma brisa. Uma manhã. Cheiro a fresco e molhado. Café! Olhos maravilha! Narinas ao rubro. Está fechado. O sítio do costume está fechado. Hoje, só hoje. Não há café. Fico ali de narinas ao rubro. Não se faz. Ouço burburinho Encerramento súbito do estabelecimento. Fico a ouvir. Grande estrondo. Grande escândalo. O insólito! Na noite anterior, o insólito foi uma mesa. Mesa de ferro ferrugenta. Estava ali há tempo demais. Abandonada. Ladeada por quatro cadeiras de ferro caladas há tempo demais. Na noite anterior, foi o pandemónio. Uma mesa ganhou coragem! Colocou tudo em reboliço. Agrediu várias pessoas com suas quatro pernas que mais pareciam braços ou garras de monstro. Fez ferida grave a quem se aproximou. Voava e protestava como se fosse gente. As cadeiras tipicamente portuguesas ganharam balanço. Também elas foram em desatino. Agrediam, acompanhando a mesa. Eram quatro cadeiras possessas e uma mesa possuída! Ninguém entendeu o que aconteceu. Por uma questão de precaução, encerrara

Cão Raivoso

Não vou falar de cães, apesar de serem uma das minhas paixões. Vou falar de paixões. Uma que, segundo “estudos” é uma extensão de uma psicopatologia qualquer (bem, alguns consideram-na saudável…). Na minha perspectiva, é um desabafo legítimo perante algo que não podes controlar ou não consegues ultrapassar. Falo da raiva. Aquele acontecimento que te tira do sério. Aquela pessoa que te apetece matar. Aquela situação em que o ensejo é mutilares-te. Todas são situações em que, pessoas apaixonadas, podem ultrapassar os limites. Limites ditos salutares ou socialmente correctos. Parte a louça. Manda uns berros. Dança ao som de Metal . Injuria e blasfema. Cospe e baba, como um cão raivoso! São momentos avarias de EDP…energia acumulada que dá um curto-circuito! Cara transfigurada e postura corporal agressiva. Após a explosão sentes o vazio. A bomba rebentou e deixou “estragos” visíveis. Podem ser pratos partidos. Podem ser palavras ditas e irreversíveis. Podem

Rugas

Rugas São como a rosa-dos-ventos, disparam em todas as direcções. Aquelas que mais me agradam são as rugas belas. Aquelas do sorriso e da idade. São elas que vincam um rosto. Lhe imprimem carácter. Lhe dão a sua definição de ser. Falo-vos de um rosto, envelhecido, certo, no entanto formoso, corajoso, brilhante e, na sua infelicidade, feliz. Olhos vivos e vivazes. Atentos, penetrantes. Um rosto de quem criou sete filhos só, após a perda do marido. Um corpo seco, musculado, perna hirta por um joelho estilhaçado pelo coice da mula e que, com tenacidade e energia, corre rua acima, rua abaixo. Azáfama constante e imparável! Eram as hortas, as sementeiras, as regas, as colheitas,… Todas deixaram as suas rugas num rosto belamente envelhecido. Tempos livres? Artista, com certeza! Rodilhas multicoloridas, remendos impecáveis, roupagens grosseiras mas costuradas com esmero. Também cinzelaram o rosto belamente envelhecido. Ralhar e chamar à atenção davam vida às rugas que, muitas

Apanhar um “pifo”

Apanhar um “pifo”... ...não é leitura para puritanos e crentes da imaculada imagem do Ser. Posto isto, que bem sabe, que bom é, de vez em quando, apanhar um “pifo”. Uma tainada com os amig@s, conversas do “Lembras-te?” ou, mais sério, “O que achas de ?”, jogos, risotas, com o copo que vai sendo reforçado por mãos que deixaste de contar. Chega a altura em que a conversa séria já não tem importância (ou tem, dependendo da perspectiva), os jogos viraram mímicas, as recordações passam a hilariantes devaneios. As expressões são de boa disposição (exceptuando os que persistem nas “conversas sérias”) e algumas faces apresentam as características rosetas do tintinho bem destilado. Depois vem a sobremesa, as ditas espirituosas, e no ambiente não há lugar para tristezas. Já tudo serve para fantasiar parábolas, inventar e inverter anedotas, treinar os músculos faciais e abdominais… É pura energia! O “pifo” define-se quando já não tens um pensamento claro e objectivo, nem com tal te

“Ó Stôra!”

“Ó Stôra!” Ouviu-se na rua. Instintivamente virei-me. Ups!...afinal não era para mim. Após tantos anos e de já ser avó de alguns, torna-se mecânico responder ao chamamento. Recordo a minha primeira aula. Ano lectivo 1992/93… Xaxus, como estava nervosa. Apesar das psicopedagógicas e bons conselhos, na hora do toque o estômago contraiu-se e a bílis subiu… Queria fugir e esconder-me bem escondidinha. Nada a fazer. O momento chegara! Respirar fundo, sorriso nos lábios e, bora lá, para a sala de aula. Uma multidão de miniaturas de sétimo ano esperava à porta. Olharam e começaram a cochichar…Ai,ai, que pânico. Entraram ordeiramente e fechei a porta. “E agora?”. A expectativa nos olhares era avassaladora e o receio de não corresponder, enorme. Comecei por me apresentar, bláblábláblá, e, consoante ia avançando, as borboletas estomacais acalmaram. A descontracção passou de fingida a real e uma espécie de cumplicidade respirava-se na sala. Dialogou-se e …”Ó Stôra?”…he,he, que sensaç

O Pote de Café

Esfregando os olhos, Andrómeda foi acordando de um sono aconchegante. A cama, com três camadas de mantas pesadas, parecia a toca de um coelho. Quentinha que ela era, a toca! O conforto era tal que a apetência para levantar preguiçosa se tornava. O frio, que se adivinhava fora, não era grande motivação. Só uma coisa poderia fazê-la saltar da cama: o café da avó! Cheirinho delicioso que vinha da cozinha… Lentamente, como uma brisa primaveril, o aroma despertou todos os seus sentidos: o pote estava ao lume. Tooca a levantar, gritava todo o seu ser! Corajosamente, empurrou as mantas, ui que frio, saltou da cama, vestiu a camisola de lã e as meias suplentes. “Bom dia, ‘Vó.”… e lá estava a avó Clotilde em volta do pequeno-almoço. Ao lume, assente nas três perninhas, encontrava-se o potinho do café. Andrómeda pegou num garfo, espetou-lhe uma fatia de pão, grosso e bem olhado, e colocou-o à beira das brasas. Era a famosa torrada au lumière , he,he. Entretanto, o pote ferve, a avó

A Aldeia que é um Ninho

O regresso é sempre algo que me envolve num espírito de alegre melancolia. Se a aldeia falasse, muitas histórias contaria. Descer do autocarro ou estacionar o carro e a “visita às capelinhas”, como lhe chamava. Avós, tios, primos,…todos eram visitados. “Então, como estás?”, pergunta inerente aos abraços e beijinhos de boas vindas. Aconchegada pelo almoço lá se punha a conversa em dia. “Sabias que?”…e era uma infindável narrativa sobre fulano tal e tal. Risadas e risotas, misturadas com algum pesar, quando da morte se tratava. Só depois chegava a vez de abrir as janelas à casa, arejar os compartimentos,…, torná-la novamente acolhedora. A noite era minha! Amigos, no café de eleição. Juntavam-se e combinavam as actividades a desenvolver até de madrugada. Como era bom regressar. A aldeia é a casa maior, onde todos te conhecem (alguns mal, vá) e tu todos conheces ( alguns dispensáveis, vá). Aí estás em segurança, o coração bate em sonância com a cadência das carroças da madru

Crónicas de Uma Viagem 3

            E a noite cai em menos de nada, límpida, mas sem estrelas no céu. Apenas vejo a lua, cheia, grande, brilhante, deslumbrante. Gosto muito da lua porque podemos olhar directamente para ela e, para mim, sempre simbolizou um elo de aproximação entre mim e quem estava longe, pois podíamos ambos olhar para a lua em simultâneo e estávamos a ver o mesmo, apesar do afastamento geográfico. É uma imagem muito reconfortante e romântica. A lua é feminina, como diz o meu “ex-namorado”.             Quase que não há outros automóveis a circular no meu sentido, nem no sentido contrário. Subitamente começam a aparecer relâmpagos no negro do céu, muitos e sucessivos. Não resisto; encosto na berma da auto-estrada, ignorando conscientemente o perigo deste acto, mas tenho de apreciar este espectáculo! Abro a porta, saio do carro, encosto-me e fico a olhar o céu por uns bons minutos, a pensar na energia carregada nos raios que, talvez um dia, a ciência a saiba aproveitar, como tentou fazer, ma