Avançar para o conteúdo principal

A velha e o pessegueiro

Cada um com a sua sentença. Era isso que os meus olhos carregavam naquele dia, com toda a certeza. Era isso que eu enxergava nos olhos dos outros que se cruzavam comigo. Talvez se o dia desse em rentável… talvez pudesse pensar: cada um na sua alegria! Mas, realmente, tinham sido dias difíceis e a palavra que me ocorria, quase sempre, talvez da forma mais injusta, era sentença. Palavra triste, pesada, escura, implacável. E foi neste estado que decidi circular. Escolhi de propósito uma rua calma, verde e silenciosa. Podia ser que a natureza me sorrisse e me dissesse: cada um com a sua alegria! 
Bem, de repente, avisto um magnífico quintal. Daqueles quintais que não são hortas nem jardins. São quadrados de terra caseira e intimista onde se cruzam couve galega com rosas ou se alinham carreiros de alfaces com canteiros de jarros. Lá ao fundo um tanque tosco de pedra que exibia claros sinais de abandono e que, já há muito, não via água nem sabão.
E qual ponto luminoso, no meio do quintal, um pessegueiro! Robusto, sofisticado, estável e intenso. Carregadíssimo de frutos maduros. E eu ali, espreitando por aquela rede que dividia a estrada por onde passeava a minha sentença e o quintal onde reinava a calma. Aquela rede acentuava, de repente, o desencontro entre a inteligência e a vontade. E os meus olhos brilhavam fixados naquele pessegueiro imponente. Estava abstraída em pensamentos, já de nariz colado à rede, quando apareceu, ao longe, mesmo debaixo do tal pessegueiro, uma velha. Mulher com mãos de trabalho, pernas de trabalho, olhos de trabalho, roupa de trabalho. Ergueu a mão direita de trabalho e agarrou, com determinação, um dos pêssegos. Carnudo, cheio e lindo de cor. Aproximou-se da rede, esticou a mão e entregou-me aquele pêssego carnudo. Não consegui dizer que não, mas, curiosamente, também não consegui agradecer. Fui, dali, de mão cheia a pensar na cara de fome que devo ter feito e que permitiu ter saído dali com tão saborosa e enigmática sentença! 
Eu nada tinha dito e a velha nada tinha pronunciado e, no entanto, uma humilhação súbita. O reconhecimento de uma dádiva, o ensinamento de um gesto de quem está habituado a lidar harmoniosamente com as sentenças.

Mónica Costa
(foto de Elizabeth Gadd)




Comentários