Deixem-me
contar-vos a história de uma mulher e que é, ao fim e ao cabo, uma das muitas
mulheres que entre vós circulam.
O
primeiro plano que apresento é este. Uma figurinha sozinha, de cabeça leve. Uma
rapariguita simples, alegre até ao céu. Fala pelos cotovelos, lambuza-se sempre
que come asinhas de frango com molho de tomate. Adora chinelos de dedo e é
livre nas suas saias curtas rodadas. Tem um gato chamado Migalha. Vive perto de
uma igreja com um adro cheio de margaridas e ouve o sino tocar todas as tardes.
Com certeza, já criaste o cenário na tua cabeça. E para já, esta história não
tem nada de interessante.
Deixa-me
continuar. Depois, a rapariguita simples começou a crescer, os seios pequeninos
viraram grandes mamas que estorvavam a brincadeira. Queria correr e aqueles
amontoados de carne abanavam por todo o lado. As pernas ficaram jeitosas demais
para andar com saias tão curtas. E quando se sentava no alpendre da sua modesta
casa, de vestido primaveril generosamente decotado, de perna relaxada, a
lambuzar-se com umas asinhas de frango, até o gato Migalhas parecia atarantado.
Assim como tu, ó homem, que já deves estar algo interessado na história e já
deves ter criado um cenário fantástico! Nesta pequena narrativa, também entram
outras mulheres: as vizinhas invejosas! …pois ansiavam ter mamas daquelas e
pernas tão torneadas e diziam que a rapariga era doida, não tinha juízo e era
pior a mãe que deixava a filha expor-se naqueles prantos.
Agora,
é a vez das personagens masculinas: os rapazes daquele local que começaram a
encher o adro da igreja. A rapariga, cada vez mais gostosa, apreciava as
margaridas e ouvia o sino tocar e os garotos apreciavam a miúda, que se ía
transformando em graúda, a ver as margaridas e a ouvir o sino. E ela vinha até
ali e ía embora alegre e descomprometida e era feliz. Foi-se, no entanto,
apercebendo que, provavelmente, não podia vestir saias tão curtas e deveria ter
cuidado com os decotes generosos. É que o adro da igreja estava cada vez mais
azafamado. Nesta altura, a tua perspetiva masculina repudia a ideia de uma
viragem brusca desta história. Queres ver que, em vez de despirem a rapariga,
lhe vão acrescentar mais roupa?!! Nada disso. Deixa-me continuar.
Então,
a rapariguita (que nunca tinha pensado nisso…) começou a olhar-se ao espelho e
viu-se pela primeira vez. E é agora que te vou apresentar um plano mais
aproximado. Quando se sentava, reparava na ligeira penugem que cobria as suas
coxas redondas e que, ao sol, ficavam maravilhosamente sedosas, ou na fofura das
suas unhas redondinhas e dos seus pés pequeninos que saltavam sedutores dos
chinelos e reparava no brilho do seu cabelo aloirado por cada manhã. Ela descobriu
a maravilha de se ser mulher. Falou com a mãe sobre esta descoberta e
confidenciou o olhar reprovador das vizinhas e o enchente de rapazes que
acorriam ao adro. E é, neste momento, que aparece uma nova personagem feminina:
a mãe, orgulhosa, disse-lhe que tudo isso era maravilhoso e que deveria sempre assumir
a sua beleza com dignidade e respeito por si. A rapariga-mulher, assim, em conformidade com
os seus princípios, decidiu manter os seus vestidos primaveris, agora pelo
joelho, ligeiramente desabotoados, revelando apenas uma nesga de peito papudo. E
tu, ó homem, dizes: Ah! Assim está melhor!
A
rapariga continuou descendo a calçada livre e alegre de chinelos de dedo, sempre
a falar pelos cotovelos, cada vez mais feminina e sempre acompanhada pelo seu
gato Migalhas. Então, num desses percursos, um dos rapazes do adro, atordoado
pelo encanto e liberdade que a rapariga teimava em espalhar, ganhou coragem e
roubou-lhe conversa. Essa conversa abrilhantava todos os dias os percursos pela
calçada. Falavam ambos pelos cotovelos. E sentiu de perto o cheiro inebriante
dos cabelos femininos que voavam ao vento e viu, de muito perto, a penugem que
cobria as suas coxas redondas. Era o desejo, corpo sem rosto. O rapaz do adro,
como tu calculas, tocou a pele sedosa da sua rapariga e comprovou o quão
delicioso é percorrer a penugem das coxas de uma mulher que sabe que ser mulher
é algo digno de respeito e adormeceu encostado àquele peito generoso e quente e
foram felizes. Descobriram a paixão, e agora o corpo ganhara um rosto. Mais um
cenário harmonioso e desconcertante que tu, como homem que és, consegues
idealizar.
Depois,
depois, a rapariga mulher e o rapaz atordoado pelo encanto casaram. A rapariga
mulher descobriu o amor e, como mulher, juntou ao corpo e rosto, algo mais
complicado e seguro: a alma. E tu, homem por natureza, pensas imediatamente que
a história começa a ficar desinteressante… e tens razão!! O amor dá muito trabalho
e o rapaz
do adro só sabia ser rapaz do adro. E continuou rapaz do adro e, distraído, já
nem repara na mulher que tem ao seu lado. Não sei se alguma vez a tua mãe te
confidenciou que Mulher é boa de olhar, mas o seu olhar só desabrocha no olhar
de um homem que a sabe olhar. E este não foi capaz disso ou não quis ter
trabalho.
Agora,
agora, a casa continua ali perto do adro da igreja que continua inundada de
margaridas. A mulher madura continua a rapariga de vestidos primaveris
ligeiramente decotados, dignos da sua beleza e respeito por si. Continua a
lambuzar-se de asinhas de frango com molho de tomate, molho cada vez mais
apurado. Já não fala pelos cotovelos. Está sozinha e livre e continua boa de se
olhar.
(o gato Migalhas continua ao seu lado)
Há
uma espécie de aviso em tudo isto, para vós, homens distraídos!
( a imagem que acompanha este texto é baseado num quadro de Marc Chagall)
Mónica
Costa
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