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Mulheres à beira de um ataque de nervos

À porta de entrada da sua mansão, todos os domingos, lá está o retrato implacável da Sogra. Parece que fulmina a gente. 
Depois entra-se, tudo impecavelmente arrumado e aparece a própria, em pessoa. Faz questão de salientar que a casa está sempre assim impecável ou não fosse ela quem é! 
Dona de casa exímia…
                 sempre mulher de botar respeito…
                                               altamente especializada em assuntos de vida doméstica.
O cabelo demasiadamente ripado compõe a imagem perfeita de uma alcachofra ambulante. Quando nova, lia todos os dias a Crónica Feminina, participou nos mais variados cursos de culinária e costura, foi aluna exemplar de um curso de crochet e até experimentou umas sessões num curso de carpintaria (mulher prevenida…). 
E ali mesmo ao lado, já no hall de entrada, a outra, a Nora, a única nora que Deus lhe deu. O pensamento que preenche a cabeça da alcachofra sempre que vê a nora, inquieta e pequenina que nem um rabanete, é «Coitado do meu filho! Podia ter arranjado melhor…».
Clã reunido! Todos à mesa, já corretamente sentados, segundo a etiqueta das boas maneiras e sob a alçada do olhar implacável da Sogra. Tem andado (coitadita!) há dois dias de canadianas, torceu um pé, mas, nem mesmo assim, perdeu a pujança. A energia que lhe fugiu do pé subiu à boca e fala que se farta, é só farpas que se lhe saem da bocarra sempre escancarada. É só fechar os olhos e aquela figura esguia e irritante entranha-se-nos na pele. A Nora está consumida! Sinceramente! É o dia mais penoso da semana – este almoço de domingo. Começa a conversa de circunstância. Todos afinados, uns sem piscar os olhos, outros riem exageradamente com as piadolas dos que decidem brilhar neste almoço familiar. E sogra que se preze, mira a nora favorita categoricamente, atacando de forma voraz. «Não estás mais gorda? Não me digas que já andaram a fazer asneiras?! Ó filho, não te metas nisso, depois já sabes, sobra para ti!».
Silêncio absurdo! Parece que está tudo à espera de resposta. A Nora, após tantos ataques, está imune, nada a declarar! Algumas oscilações, algumas trocas de olhares e ataca-se o frango incrivelmente temperado e assado que triunfa no centro da mesa. «Há muito tempo que não comia um franguinho destes!!» - desabafa o Rodriguinho enfeitiçado. Olhar fulminante e rosto aceso da Nora que se transforma em esposa assanhada. Levanta-se e vai à casa de banho refrescar as faces. Tudo ao rubro! 
Mesa composta…
                 ringue montado…
                                       Nora e Sogra em tremendo debate silencioso...
                                                                        ataques verbais disfarçados…
                                                                                                                  risos amarelos!
Todos adoram esta sogra que consegue impor este clima de desafio permanente e que, com sabedoria, prima pelas relações saudáveis entre familiares sem nunca descurar a preservação do clã original. Nora vem refrescante, senta-se cautelosa e timidamente na mesa. Vai provar o frango maravilhoso e deteta um forte sabor a gengibre a que é alérgica. Suspende a garfada e imediato novo ataque «Pode comer que não tem veneno!». Todos riem! Nora olha o relógio já solidário que desabafa «Já falta pouco, daqui a nada, tudo isto não passa de um sonho (ou pesadelo)». Alguns levantam-se e a Nora, já exausta, aproveita para se pirar imediatamente de cena. Arrasta o marido Rodriguinho que cai molemente no sofá bem temperadinho com a vinhaça do sogrinho e o franguinho da sogrinha. Está completamente transformado pela energia daquela casa manipuladora. Sogra que se preze tem este efeito!!
Chega a sobremesa! Mais uma oportunidade fantástica da senhora superdotada mostrar os dotes de fêmea líder. Camadas e camadas de bolo recheado com frutos do bosque e camadas e camadas de chantilly de fazer crescer água em qualquer boca. Vem repimpada exibindo a sua fantasia culinária e… tropeça. 
       Cai o bolo…
                  suja a carpete de arraiolos…
                           a cara de sogra está coberta de camadas e camadas de chantilly….
                                                                   frutos vermelhos pendurados na cabeça de alcachofra.
Tenta levantar-se pesada e raivosa. Tenta alcançar a Nora e entregar-lhe a travessa caríssima intacta, mas sem largar a última camada de bolo salva como que por magia. Nora sorri e, de costas para a Sogra, faz-se de desentendida. De gatas, a Sogra limpa dos braços os últimos pedaços de bolo com chantilly e observa a Nora num palavrão engolido. Terror instalado nos olhos de quem conhece a fera, desenrasca-se a despedida de forma brusca e «pira-te para o carro que se faz tarde». 
Se se olhar para trás ainda se vê
     a Sogra que perdeu a compostura
                 com uma réstia de frutos vermelhos no cabelo ripado
                              e todos à sua volta a tentar compor a imagem implacável do retrato!

Mónica Costa
(a imagem que acompanha este texto é um quadro de Pablo Picasso)




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