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Mensagens

Ao que chega o desconcerto!...

A minha avó numa qualquer janela a acenar-me lá de cima, recomendando-me cuidados. Ora esta! Foi um sonho desconcertante o que tive! Ela que nunca me considerou a neta preferida, em vida, demonstrava preocupação, agora depois de morta, por eu seguir ligeira pela rua fora. Ainda por cima uma rua larga e bem iluminada! Uma rua que não inspira cuidados! Ao que chega a hipocrisia!  E, ao mesmo tempo que a sua voz estalava no silêncio da rua, reclamando cuidados, um sino marcava as seis da tarde. E havia um raio de luz que ía ensombrando aquele dia. Ora, como eu sempre adorei os finais de tarde e seguia por uma rua segura, ignorei as recomendações da mulher que espreitava naquela janela! E lembrava-me dos dias inconscientes onde me estirava no chão do quintal da minha avó. Depois de um dia de brincadeiras, ficar ali esparramada junto das avelãzeiras, a ouvir os passarinhos nas árvores, era do melhor que podia existir para alimentar uma criança daquela idade! Tinha a mesma magia e sabor d

Sabe agora

Sabe agora que não devia ter desprezado os sinais dos relógios. Devia ter percebido que um relógio quando pára está em protesto. No seu caso, os três relógios de pulso que tem a uso - não agora, obviamente - foram amuando, um após o outro. Até o relógio da cozinha se solidarizou, atrasando-se alguns minutos.Os relógios param, toda a gente sabe isso. Já tinha acontecido com alguns deles outras vezes. Nada de novo. A novidade está no facto de se terem unido em protesto. Queixaram-se que o pulso dela não batia como antes. Reivindicavam, portanto, melhores condições de trabalho. Explicou-lhes que o responsável não era o pulso, mas o coração. Prometeu-lhes que faria tudo para que não tivessem motivos para queixas. Disse-lhes que começaria por comprar pilhas e que, logo que possível, arrumaria o coração, alimentá-lo-ia para garantir o seu funcionamento pleno. da autoria da minha amiga Lu F. Obrigada! (pintura de Rita Constante)

O pão nosso de cada dia

Acordas atordoado para o quotidiano do não e eis a tua vida a água e pão pão estrafegado de manhã ao balcão, pão sem manteiga e, com sorte, um galão e assim engolido de pé para a mão, segues iludido com o pão de centeio e ficam insolentes as migalhas no balcão a denunciar a tua condição de papo meio cheio Puxas as orelhas ao saco de plástico enraivecido, pois então!... E a ti que te dizem que não deves ter fome nem sede acabas por comer o pão todo e ainda levas, para casa, meia dúzia de pães em promoção! E, no dia seguinte, enfrentas a admoestação e por todas as ofensas pedes perdão vais alimentando toda esta máquina poderosa que não pede desculpa pelo que ofende comandada pelos que não se alimentam de pão porque já engordaram… não precisam… (sejam feitas as suas vontades assim na terra como no céu!) Mónica Costa (foto de Raymond Depardon)

Vidas de todas as vezes que lemos!

Vidas de todas as vezes que lemos!  Olhamos os outros em todo o seu silêncio e admiramos-lhes a calma. E ficamos incomodados. Desconhecemos, no entanto, as lutas de dentro. Desconhecem eles as nossas ao admirar a nossa calma. E ficam eles incomodados. Dizia o outro: sê gentil, pois desconheces as bata-lhas que o outro trava!  Foi assim que começou o meu dia de hoje. Viagem de comboio para variar. Sentada perto de uma janela a ver deslizar a paisagem. Um pedaço de ponte e um pedaço de água, uns raios de sol e um braço de nevoeiro ao longe. Nunca entendi muito bem o silêncio das marginais. E muito menos o mistério que se extrai das manhãs de outono. A indiferença com que a natureza se oferece em calma sem a menor ponta de luta por dentro. Eu não lhe exijo nunca que entenda o meu silêncio, mas gosto quando é capaz de me revelar a luta que travo por dentro. Entretanto, vem-se sentar à minha frente uma pessoa. Endireita-se no banco e abre um livro. É um livro com poemas por dentro. Daq

na mesma página

São curiosas as voltas da vida! As voltas nossas, as humanas… E dessas voltas e voltas, resultou virmos parar à mesma página Esta, agora, onde nos encontramos e que esconde revelando a mesma raíz…  esta origem inefável, irremediável esta insustentável leveza do ser E da raíz presa às entranhas da Terra surge a minha e a tua a vontade de ver surgir uma flor Esta, agora, que vemos e admiramos e de onde surge a razão do mesmo perfume dos teus dias e dos meus e nos vai amparando Em voltas e voltas de fazer virar uma e outra páginas em admirável e corajosa viagem frágil do ser! Mónica Costa

Maldita Poesia!

Mas que raio de técnica esta a da maldita poesia que não me larga uma técnica infalível e a qual contraria quase sempre a regra psicanalítica: interessa o que quer dizer mas nunca o que diz! Mónica Costa

impertinências

Uma friagem danada de exigir casaquinho e surgia a manhã em nevoeiro. E foi uma folhinha impertinente a que, de imediato, se veio pôr a meus pés Veio e pousou lenta, de verde desbotado e com insistentes achaques de amarelado. Pensava, talvez, que lhe fosse prestar a devida vénia, mas ali ficou, desprezada. Contornei-a e segui o meu caminho. Na volta, já despontava algum sol por entre as nuvens e eu, ainda bebendo a sua sombra devagar, e por dentro de mim o som do mar. Contornei-a e insiste ela em meu caminho… a mesma folha impertinente a exigir outono, a exigir intimidades. E se as folhas do outono cismarem aqui à minha porta todos os dias? convidando-me aos castanhos e amarelados? a obrigar-me a não ficar presa ao verão? anunciando que está a acabar, quando eu estou sempre disposta a começar? Mónica Costa

É esta a nossa escapatória e a nossa força!

Ainda me lembro desse dia. Era um corredor comprido e estreito cheio de portas de madeira. A meio do corredor estava a minha sala de aula. E eu pequeníssima. Não havia confusão nos corredores, apenas uns quantos jovens, circulando sem grande entusiasmo. Era uma escola secundária, daquelas que tinham estilo e cheiro de antigas escolas industriais. Nesse corredor, havia duas portas que me chamaram desde logo a atenção. A porta da sala dos professores. Fixei-a, imaginando uma nuvem de fumo (sempre achara que os professores fumavam muito). Era uma sala de porta sempre fechada e quando se abria era entreaberta apenas por alguns segundos e logo se cerrava. Era o reino da sabedoria (pensava eu). É que sempre olhei os professores como ricos (de dinheiro e sabedoria!!). Depois havia a porta da biblioteca. Escura, cheia de armários fechados de madeira escura, uma longa mesa no centro escura e livros de capa dura e com cheiro a velho. Dali a uns dias, haveria de descobrir o prazer de abrir livro

Em verdade vos digo: estou descansada! Pousei a espada…

Em verdade vos digo: estou descansada! Pousei a espada… Atirei com o elmo e afastei o escudo para bem longe E são três da tarde. Uma mesa sombreada, daquelas de esplanadas direitas e sossegadas num recanto de rua primaveril que, à partida, não serve para nada. O verão está a chegar ao fim. Não há tristeza. Há uma aragem, uma brisa suave… um quente que persiste, algumas folhas de árvore um silêncio. Pousei a espada… Há também um sol, leve sol e uma pele algo dourada Está macia e ouve o vento suave que diz: - Qualquer dia, somos outono. Estás feliz? E eu respondo que sim, claro que sim! - E porquê? E eu respondo. - Escolhi uma razão para ser alegre sem hesitação. Uma minúscula razão! Que por mais pequena que seja, ou pateta, ou ingénua, ou banal ou extravagante me possa dar à luz sem hesitação. Em defesa do que é belo e bom nesta vida. Mónica Costa (foto retirada de Pinterest)