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Vidas de todas as vezes que lemos!

Vidas de todas as vezes que lemos! 
Olhamos os outros em todo o seu silêncio e admiramos-lhes a calma. E ficamos incomodados. Desconhecemos, no entanto, as lutas de dentro. Desconhecem eles as nossas ao admirar a nossa calma. E ficam eles incomodados. Dizia o outro: sê gentil, pois desconheces as bata-lhas que o outro trava! 
Foi assim que começou o meu dia de hoje. Viagem de comboio para variar. Sentada perto de uma janela a ver deslizar a paisagem. Um pedaço de ponte e um pedaço de água, uns raios de sol e um braço de nevoeiro ao longe. Nunca entendi muito bem o silêncio das marginais. E muito menos o mistério que se extrai das manhãs de outono. A indiferença com que a natureza se oferece em calma sem a menor ponta de luta por dentro. Eu não lhe exijo nunca que entenda o meu silêncio, mas gosto quando é capaz de me revelar a luta que travo por dentro. Entretanto, vem-se sentar à minha frente uma pessoa. Endireita-se no banco e abre um livro. É um livro com poemas por dentro. Daqueles textos curtos que se lê devagar porque são compridos de sentido. Exigem que nos conheçamos por dentro. E aquela pessoa viajava. Havia ali a palavra mar e água, rio e fio, de certeza. E a água devia estar fria porque de quando em vez os pelos do braço eriçavam. Sorria por vezes, outras esfregava os olhos, arregalava-os também e ía colocando cruzes e sublinhados em versos específicos. E ía sossegando porque ali estava a humanidade em comum. Somos nada! Não tinha sido a primeira vez a admirar tal cenário. Cada vez se vê mais gente calada, às vezes, tranquilizando a luta de dentro com a calma de uns versos ou prosas. A leitura é exercício de alteridade. É tempo que se ganha numa viagem assim. Uns instantes de calma, de oásis, de foco. Aceitar que se está sentado a fazer uma só coisa de cada vez, a saber respirar, a ouvir os nossos batimentos. Porque preparar-se para a corrida é saber alongar.

Mónica Costa
(pintura de Renoir)






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