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o muito que ali está

É estranho como acordamos às vezes! Assim aconteceu um dia…
Tinha eu cinco anos e, numa certa manhã, acordei sem qualquer reação nas pernas. Choque! Pânico! Gritei pela minha mãe! A mãe não acreditava… pensava que eu estava a fazer fita! Ao fim de alguns segundos, percebeu que era verdade! Não estava a fingir… eu não conseguia andar! Surgiu um telefonema atrapalhado! A mãe discava num daqueles telefones pretos enormes, que só quem é dos anos 70 sabe do que se trata! Do outro lado da linha, a voz do pai que vem a correr! Chega o pai e mais a mãe, ambos aflitos! Levam- -me para o hospital! É grave! – dizem-lhes… E agora?
Lá estou eu numa cama de hospital! Hospital de S. João, no Porto! Um quarto branco igual a todos os outros e muita gente à minha volta! Lembro-me de tudo! Aos poucos fui ficando imóvel, completamente paralítica! Foi um mês de tortura. Para uma criança vivaça como eu, foi de uma profunda tristeza! Ficou a bicicleta para trás, os caminhos enlameados de brincadeira, as correrias ao fim da tarde, os jogos do elástico esquecidos e mais não sei quantas subidas e descidas de muros! À noite, todos se iam e eu ali ficava sozinha com uma campainha perto da almofada (que nem podia manobrar para chamar alguém porque também não mexia os braços)! De dia, havia sempre visitas de médicos e enfermeiras, familiares e amigos, havia presentes e presentes (que ficavam ali na mesinha de cabeceira a olhar para mim à espera de melhorias!). Até hoje ainda não percebo muito bem o que aconteceu – meningite, encefalite…??? 
Os melhores momentos que ali vivi foram-me proporcionados por uma senhora (talvez enfermeira) que, de quando em vez, aparecia para me ler uma história. Deve ter sido aí (da pior maneira possível) que senti o poder libertador dos livros! 
Se isto me acontecesse com a idade que tenho neste momento, não seria um facto, mas uma terrível desgraça! Ía-me afundar em suposições idiotas, filosóficas talvez, iria exagerar a dor do presente, arruinando qualquer hipótese de futuro, cismando no passado. Mas, naquela altura, perguntava todos os dias «Quando é que vou ficar boa?». Respondiam-me, normalmente: «Está quase! Qualquer dia, já vais para casa!». E eu arrecadava aquela resposta com uma esperança e uma alegria desmedidas. Havia uma força que me invadia e me fazia sonhar. O futuro era o tempo infantil! E voltava a ver os muros e os caminhos, a minha bicicleta brilhava à minha espera! E sorria! E aguardava feliz pelos momentos vividos. Quando fechava os olhos, era tão feliz! O passado era simplesmente motivo de projeção no futuro! Ganhei o apego às coisas que perdera! E com uma tal intensidade que as guardava para as poder ter novamente!
Um dia, senti os braços! Havia vida naqueles braços e conseguia mexê-los! Pensando que já estava boa, movi-me para descer da cama… mas as pernas ainda não reagiam e, portanto, foi um grande trambolhão! Pela primeira e última vez, senti a altura das camas de hospital! Caí no chão redonda, mas feliz! Arrastei-me pelo chão, usando os braços, até à porta do quarto! Tão bom! Era um esforço limite! Era a minha vitória! Era a felicidade de ter alcançado a porta! 
Quando voltei a casa, lá estava uma bicicleta amarela à minha espera! Nunca mais parei! 
Hoje, caminhava pelo parque e quase que chorei só de pensar na felicidade de poder deslocar-me agilmente! Como diria, Miguel Esteves Cardoso «Em vez de nos queixarmos do que vemos e de repetirmos o que preferíamos ver, podemos usar os olhos para olhar, para ver o muito que ali está. É o mundo que se deixa ver. Está à mostra.».

Mónica Costa


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