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Vale de Curro

Pronta para saltar da cama!
...os primeiros ruídos de actividade ouvem-se e a Menina está pronta!
"Ó Vó?...o primo já foi buscar a Boneca?". Perante a anuência da avó, ela salta da cama, corre para a casa de banho, um lavatório esmaltado com balde e apoio para a toalha, um buraco no chão como sanitário, que escoa directamente para a estrumeira. É rápida...o barulho da carroça acelera os afazeres matinais.
Corre escada abaixo, abre a porta e...alegria: a Boneca está atrelada à carroça e impaciente para dar uma volta. Não gosta de estar parada nem de festas, mas consente que a Menina lhe faça umas carícias no focinho sedoso, enquanto as orelhas não param de se movimentar. As moscas, apesar da hora, já começam a picar e a Boneca mostra a sua insatisfação fustigando com a cauda o ar inebriante da manhã.
Bora! Bora!...toca a carregar a carroça: baldes, enxadas, foices,..., e o farnel. Sobe e não, não quer ir sentada no banco-tábua-de-madeira, preferindo aconchegar-se entre as sacas e os baldes. "Vamos Boneca!"...e esta, sempre em negação e orgulhosa de ser uma mula de mau feitio, arranca pelos paralelos da rua. Embalada, a Menina vai apreciando as casas com sardinheiras e cravos nos vasos exteriores e nas varandas de madeira, aprecia cada minuto das saudações da matina entre carroças e donos "Bom dia.", "Bom dia."
Ao cimo do povo, o ar altera-se e a Menina, ergue-se em expectativa. O piso mudou...é mais fofo, e as rodas de ferro suavizam o andamento. "Eia! Eia!...Boneca!". O incentivo e a largada das rédeas apressam o andamento da mula. Agora vale a pena erguer-se do ninho de sacas...em pé, num mundo de liberdade, os braços abrem-se e a Menina enche os pulmões de pura alegria. "Agarra-te", ralha a avó, "ainda vais cair". Nem pensar...o mundo é da Menina e da Boneca. Juntas, já sabem o caminho de cor, viram no cruzamento e atravessam o caminho que as chuvas tinham transformado numa pista de crateras. A suavidade do percurso é, agora, um balancé de socalcos em passo cuidado e ondulante. Ambas sabem que estão quase a chegar ao destino.
Vale de Curro...
"Pára. Oua!Oua! Boneca!"
Desatrela-se a mula, que se prende debaixo de uma oliveira, mas ambas sabem que, primeiro,  ela ainda vai querer rebolar-se na terra...O espectáculo começa. Livre dos arreios, resfolega, abre as narinas e relincha. Dá umas voltas e...pimba!...deitada no chão, esperneando de satisfação, cobre-se de uma camada terrosa que a protegerá contra os ataques dos moscardos. Satisfeita, levanta-se e sacode todo o corpo...Ena, que poeira no ar! Agora sim, está pronta para esperar ao longo do dia. Presa à oliveira, com um molhe de milho fresco e um balde de água, Boneca cumpriu a sua missão matinal.
A Menina faz-lhe uma festa no focinho e vai juntar-se à avó que, entretanto, já estava no poço a ajeitar o caldeiro para tirar água. "Vai lá para o fundo do rego e grita quando a água lá chegar."...mandada pela avó, corre para o sítio de eleição: agora pode apreciar a chegada da água e os pequenos flutuantes que com ela se aproximam. Pequenas folhinhas e pauzinhos que são resgatados e transformados em barquinhos cujo percurso é seguido com atenção. Ui, que distracção..."Vó, já chegou!"...Enquanto o rego é torneado, a Menina vai vendo se algum moranguito já está maduro. Adora o sabor daquele pequeno fruto rosado.
As horas vão passando e está na hora de explorar o farnel: batatas cozidas com casca, tomate, cebola, pão e queijo. Maravilha!...Quem se lembra de lavar as mãos perante este repasto?! Pelam e migam-se as batatas, cortam-se os tomates e a cebola e, bem regados com azeite, é o melhor almoço do mundo. Reforço, afinal ajudar a avó é duro, de pão com queijo e um cacho de uvas colhido na hora.
As pálpebras da Menina começam a pesar...hmmmm...uma mantinha e, upa, uma soneca debaixo da pereira. Aquela que tem um baloiço nos seus galhos mais fortes.
Um acordar tranquilo, rodeado pelos ruídos da natureza...mas aquele que a Menina mais gosta é o do vento que agita as folhagens. Parecem ondas longínquas e suaves de um sonho embalado. Que prazer e satisfação!
A tarde é passada a construir pequenas casinhas de lama e pedrinhas. O aldeamento está quase pronto, já só falta colocar os telhados no "barro" entretanto seco e delimitar os espaços.
"Ó filha, vem aqui ajudar a avó a carregar!"... o sinal estava dado: carregar a carroça com a melhém , tomates frescos e couves.
Boneca que, cabisbaixa, relaxava debaixo da oliveira, começa a agitar a cabeça (não gosta nada dos freios!!) e a calcar a terra com as patas. Está na hora de regressar.
Tudo a postos e prontos para voltar a casa. A passada agora é mais lenta,  não há pressa em chegar após um dia de trabalho no campo.
Bamboleante, a carroça movimenta-se e a Menina, com o coração cheio, observa o por do sol, enquanto repesca no farnel um pouco de pão com queijo,...Lindo. Quente. Acolhedor.
Já pouco recorda da chegada...É recolhida em braços e levada para a cama.
Fora mais um dia de pura felicidade!

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