Avançar para o conteúdo principal

Recluso 269

Andrómeda está inquieta. Sabe que tem algo para fazer, mas não se consegue obrigar a agir.
A inquietude já há algum tempo que se manifesta. Sonhos agitados e tenebrosos recordam-lhe o passado que, ironicamente, o Mestre Interior, reescreve de forma cruel e real…
Andrómeda sabe que terá de fazer algo…
Levanta-se. De que adianta manter-se num limbo em que o Mestre Interior, MI, brinca e manipula a sua razão e emoções? Mais vale tomar um café e fumar um cigarro. O.K., duas toxinas que, e dá jeito a Andrómeda contrariar MI,  já foram medicina e moda. Andrómeda não quer saber.
Mas, o mal estava feito, a recordação estava de volta. Fechou os olhos e revive a cena arquivada da adolescência. Casa de banho. Grupo de Femina. Fumo espesso, malcheiroso e sufocante. O ritual iniciático estava em curso. Andrómeda, escanzelada e pálida, onde somente os dois dentes tinham cor, tenta novamente “travar” o fumo do cigarro. Engasga-se e tosse. Os incentivos renovam-se “Tu consegues!”, “Já sabes que é preciso se quiseres andar com a malta.”,…Perto do desmaio, Andrómeda recorda a última humilhação: “Ó Dentuças, consegues partir-me o ferro?!”. As risotas de todos em pleno átrio da escola,  farpas que, como setas, se espetam directamente no Ego.
“Não! Não! Nunca mais serei o palhaço!”…que ingenuidade, relembra Andrómeda amargamente. Bebe um golo de café, forte e reconfortante.
…”Vá, lá. Mais uma vez…Tu consegues Dentuças!”…e, finalmente, consegue “travar” uma passa. O aplauso, a alegria é geral. As Femina estão satisfeitas. Em frente ao espelho da casa de banho, Andrómeda, vê dois dentes de ouro e um rosto esverdeado,…, e o esboço de um pequeno sorriso. “Consegui!”…O sorriso abre-se e, como um raio de Apolo, os dois dentes de ouro, reluzem e iluminam o rosto de Andrómeda. Conseguira. Entrara…
Terminado o café, apagou a beata do cigarro e espreguiçou-se. Tem de resolver a questão do Recluso 269. Preso por posse de droga, inteligência mediana mas incrivelmente astuto. Estaria apto para a condicional?
Andrómeda pega na pasta de cartão e revê o processo. Primeira detenção, sem precedentes, ambiente familiar estável, escolaridade obrigatória cumprida, percurso de ensino superior interrompido,…, definitivamente classe média. As sessões tinham oscilado entre progressos e teimosias. Racionalmente, as condições estavam reunidas para um aval positivo para Condicional. Andrómeda decide-se e assina o parecer. O Recluso 269 poderá sair e reiniciar a sua vida em sociedade. Sociedade?! Andrómeda sorri, com a boca a saber a fel, e não se esquece que já muitos Reclusos 269 lhe passaram pelas mãos …A grande maioria, regressara. Mais cedo ou mais tarde, acabavam por regressar.
Satisfeita por, pelo menos ter despachado uma das decisões, uma a menos para MI a atormentar, Andrómeda toma banho, veste-se, pega no processo e, antes de sair, sorri para o seu reflexo do hall de entrada “Como és linda, minha pequena Dentuças!”, sussurra MI.
Satisfeita, sai e enfrenta o dia radioso, o sol que ela tanto detesta, e de imediato fecha a boca. O ouro não traz felicidade!...triste de quem de outra forma pensar. Caminha até à Prisão, entra no Corredor dos Reclusos, Gabinete 14. O seu local de trabalho está como o deixara. Secretária organizada, agenda, processos, petições,…, pombas, esquecera-se de encerrar o computador. Um cacto solitário, encafuado na prateleira de uma estante, dá-lhe as boas vindas.
Pega no processo do Recluso 269, sobrepesa novamente a decisão tomada e, “Que se lixe!”, eles não acabavam por regressar?! Pelo menos, uma tentativa merecia.

MI, sarcasticamente, grita-lhe aos ouvidos “Eu voltarei, eu não sei viver lá fora!”. Andrómeda tapa os ouvidos, sim, como se isso impedisse MI; dirige-se à Secção de Arbitragem e entrega o processo. Agora, meu caro 269, compete-te a ti enfrentar novamente a Sociedade. Que a Entidade te acompanhe!...e que as tuas Femina não te levem a cair em tentações.


Comentários