Andrómeda está inquieta. Sabe que tem algo para fazer, mas não se
consegue obrigar a agir.
A inquietude já há algum tempo que se manifesta. Sonhos agitados e
tenebrosos recordam-lhe o passado que, ironicamente, o Mestre Interior,
reescreve de forma cruel e real…
Andrómeda sabe que terá de fazer algo…
Levanta-se. De que adianta manter-se num limbo em que o Mestre
Interior, MI, brinca e manipula a sua razão e emoções? Mais vale tomar um café
e fumar um cigarro. O.K., duas toxinas que, e dá jeito a
Andrómeda contrariar MI, já foram medicina e moda. Andrómeda não quer saber.
Mas, o mal estava feito, a recordação estava de volta. Fechou os
olhos e revive a cena arquivada da adolescência. Casa de banho. Grupo de
Femina. Fumo espesso, malcheiroso e sufocante. O ritual iniciático estava em
curso. Andrómeda, escanzelada e pálida, onde somente os dois dentes tinham cor,
tenta novamente “travar” o fumo do cigarro. Engasga-se e tosse. Os incentivos
renovam-se “Tu consegues!”, “Já sabes que é preciso se quiseres andar com a
malta.”,…Perto do desmaio, Andrómeda recorda a última humilhação: “Ó Dentuças,
consegues partir-me o ferro?!”. As risotas de todos em pleno átrio da escola, farpas que, como setas, se espetam directamente no Ego.
“Não! Não! Nunca mais serei o palhaço!”…que ingenuidade, relembra
Andrómeda amargamente. Bebe um golo de café, forte e reconfortante.
…”Vá, lá. Mais uma vez…Tu consegues Dentuças!”…e, finalmente, consegue “travar” uma
passa. O aplauso, a alegria é geral. As Femina estão satisfeitas. Em frente ao
espelho da casa de banho, Andrómeda, vê dois dentes de ouro e um rosto
esverdeado,…, e o esboço de um pequeno sorriso. “Consegui!”…O sorriso abre-se
e, como um raio de Apolo, os dois dentes de ouro, reluzem e iluminam o rosto de
Andrómeda. Conseguira. Entrara…
Terminado o café, apagou a beata do cigarro e espreguiçou-se. Tem
de resolver a questão do Recluso 269. Preso por posse de droga, inteligência
mediana mas incrivelmente astuto. Estaria apto para a condicional?
Andrómeda pega na pasta de cartão e revê o processo. Primeira
detenção, sem precedentes, ambiente familiar estável, escolaridade obrigatória
cumprida, percurso de ensino superior interrompido,…, definitivamente classe
média. As sessões tinham oscilado entre progressos e teimosias. Racionalmente,
as condições estavam reunidas para um aval positivo para Condicional. Andrómeda
decide-se e assina o parecer. O Recluso 269 poderá sair e reiniciar a sua vida
em sociedade. Sociedade?! Andrómeda sorri, com a boca a saber a fel, e não se
esquece que já muitos Reclusos 269 lhe passaram pelas mãos …A grande maioria,
regressara. Mais cedo ou mais tarde, acabavam por regressar.
Satisfeita por, pelo menos ter despachado uma das decisões, uma a
menos para MI a atormentar, Andrómeda toma banho, veste-se, pega no processo e,
antes de sair, sorri para o seu reflexo do hall de entrada “Como és linda,
minha pequena Dentuças!”, sussurra MI.
Satisfeita, sai e enfrenta o dia radioso, o sol que ela tanto
detesta, e de imediato fecha a boca. O ouro não traz felicidade!...triste de
quem de outra forma pensar. Caminha até à Prisão, entra no Corredor dos
Reclusos, Gabinete 14. O seu local de trabalho está como o deixara. Secretária
organizada, agenda, processos, petições,…, pombas, esquecera-se de encerrar o
computador. Um cacto solitário, encafuado na prateleira de uma estante, dá-lhe
as boas vindas.
Pega no processo do Recluso 269, sobrepesa novamente a decisão
tomada e, “Que se lixe!”, eles não acabavam por regressar?! Pelo menos, uma
tentativa merecia.
MI, sarcasticamente, grita-lhe aos ouvidos “Eu voltarei, eu não
sei viver lá fora!”. Andrómeda tapa os ouvidos, sim, como se isso impedisse MI;
dirige-se à Secção de Arbitragem e entrega o processo. Agora, meu caro 269,
compete-te a ti enfrentar novamente a Sociedade. Que a Entidade te
acompanhe!...e que as tuas Femina não te levem a cair em tentações.
Comentários
Enviar um comentário