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a cidade é grande e tu és uma só

A cidade é grande tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só. Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando, talvez na rua ao lado, talvez na praia talvez converses num bar distante ou no terraço desse edifício em frente, talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes, misturada às pessoas que vejo ao longo da avenida Ferreira Gullar

ali, à porta da Barbearia Veneza

Os Aliados, com chuva, é avenida que nunca mais acaba. " Ó menina, chove que deus a dá!"- soa a voz de dentro. Foi por este motivo que cortei à esquerda, na esquina do Hotel dos Aliados, e entrei no número 37. "Fique  sabendo que esta barbearia foi ponto de encontro dos cavalheiros da cidade. Em quase todas as manhãs chuvosas como esta, vinham cá o Tino Coçado, o João dos Baixos e o Finório de Louredo. Uma vez até veio a Alice Tripeira... ganhou coragem e adentrou-se por entre todos eles, pedindo um corte curto e de risca ao lado. Com mais cuidado, reparo no espaço de onde vinha a voz de dentro. Subitamente, até parece que me vem ao nariz um cheiro a aguardente barata em balcão de mármore, parece ouvir-se aquele rouco soar a relato futebolístico de tardes de domingo. E foi como se, de repente, a mercearia da esquina da rua da minha infância abrisse portas e eu assistisse, impávida, ao desfilar de latas de atum, caixas de Omo e vários tubinhos de pintarolas encostados uns

às pestanas irrequietas diante do sol

Podes dar-me a tua mão sempre que quiseres Trago os braços estendidos para ti ( o título é de Fernando Della Posta)

as tuas noites vão ficar bem doces

O que atrapalha não são as pessoas de bem com a vida. Essas contribuem para o bem-estar geral, incluindo o meu. As de bem com a vida partem em paz por estarem bem na vida e, simplesmente, se afastam. As de bem com a vida são as que se aproximam ou se mantêm por perto, acrescentando sempre algo de positivo à vida de todos os dias. As de bem com a vida já são poucas, mas são boas. Puxo-as para mim com os dois braços.  O que tem atrapalhado são as pessoas de mal com a vida. Revoltadas. Não conseguem. Não querem. Isolam-se, metem-se na concha. Ladram muito. Muita lábia, fraca mandíbula. Escudam-se. Só veem defeitos. Não vivem, sobrevivem. E não gostam dos que têm a coragem de viver. O pior de tudo, como diz José Carlos Barros, é que consideram que  O problema sempre foi o das más companhias: são os outros que corrompem. Por nós, cada um de nós, o mundo não teria uma nuvem de cinza ou um único muro erguido a desenhar com alvenarias as fronteiras e a intolerância. O problema do mundo sempre

quando nos deparamos com objetos tão límpidos, ficamos sempre comovidos

e porque, às vezes,  são flores cada pétala uma letra todas em uníssono uma palavra e às palavras tantas um trinado que as declama em todas as cores será que é por existir dentro de nós uma qualquer brancura imaculada e inviolada que, quando nos deparamos com objetos tão límpidos, ficamos sempre comovidos? (os últimos quatro versos são de Han Kang)

A praia é a minha praia o ano inteiro.

  As praias vazias e frias são dos corajosos  ou dos tristes e solitários ou dos descontraídos ou simplesmente dos que não desistem do mar  mal ele nos acena com um deixa-me em paz. As praias no outono têm personalidade às vezes, brindam-nos com um sol inesperado outras regalam-nos com um nevoeiro cerrado outras ainda com a chuva, somos água na água. As praias no inverno exigem que resguardemos a chama trémula no côncavo das mãos. As praias vazias são mais apetecíveis, deliciosas  não cheiram a protetor solar exalam sargaço, vida, atrasam colapsos. A praia é a minha praia o ano inteiro.

Quer e não quer

Quereres. Faz apelo aos novos hábitos, mas apenas quer os velhos costumes. Quer virar a mesa ao contrário de patas para o ar para que lhe reconheçam autoridade, mas apenas andou a vida inteira sem saber viver. É um quer e não quer. Quereres. E agora lembrou-se que urge recuperar o tempo perdido e quer. Pragueja, mas sorri. Sorri bastante, o indeciso. Treina todos os dias poses sorridentes como quem tem de provar que quer o que não quer. Conserva bolores, simulacra bondades. Finge paciências. Abafa impulsos. Umas vezes quer, outras não quer. Desperdiça-se em quereres e não quereres. Vive sem vontades.

Dá-me ares

Tens a cabeça em desalinho. As figuras saem-te impercetíveis. E tudo em volta num redondo. Um labirinto. Por entre sombras e alucinações, escapam-se letras das palavras e palavras das frases. Tudo numa caligrafia desgraçada da qual se subentende o que se pode. Uma linha temporal só tua. Os pronomes tomaram o lugar dos nomes próprios. Tens os olhos no passado. Do futuro quase nada. O horizonte fechou-se. Ficaste muito estático a olhar para mim e disseste: - Dá-me ares…

Sentes como, de tanto caminhar sob este chapéu de chuva escarlate, as emoções estão ao rubro?

Já viste como são da cor das árvores os meus cabelos que, ao som da chuva que cai, esvoaçam em farripas despenteadas? E sentes como é bom andar por esta rua, nesta tarde tão molhada? E vês como ando de olhos vivos, dóceis ainda, tão prontos na procura? Já reparaste como a cor se espalha e nos faz notar? Vermelho, verme, tinta, encarnado, carne viva? E o que dizer destas faces coradas? Sentes como, de tanto caminhar sob este chapéu de chuva escarlate, as emoções estão ao rubro? Perto de ti, tudo inflama.