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Ela vive da ferida aberta que infeta

Ela é a vontade do destino. Uma vida à face da Terra na mais tremenda inutilidade. Se fosse única, não havia problema, mas ela pertence a um grupo dos mais horripilantes e numerosos grupos à face da Terra. Portanto, não há nada a fazer! Não é ela, são elas!
São minúsculas, mas propagam-se de forma exímia. São às quinhentas a oitocentas de cada vez. É praga! Não há nada a fazer, só esperar que se cumpra o desígnio. 
Elas aí vêm!! São a destruição das nossas arquiteturas mais belas, causam-nos embaraço por se adaptarem de forma exemplar e subtil ao normal funcionamento desta Máquina. Ganham vida própria ao sabor das suas pretensões. Não têm qualquer utilidade, apenas aparecem, são geradas e sobrevivem à custa dos outros. 
Esta, que me mira atentamente, é uma arrastadora de moléstias e, por cada maldade, suga-nos o sangue em três tempos e transforma-o em glória. E é,  nesse momento, que muito azul, muito cheia de papo, abominável, sem saída, presa dentro de si e orgulhosa, enclausurada na sua própria trama, come desmesuradamente como compensação. É de um escárnio cego, apesar do seu arsenal ocular. E olha, olha muito para mim. Para nossa desgraça e sua benesse, nasce e vive da parte mais fraca do nosso planeta: a carne. Ela vive da ferida aberta que nos assiste e infeta. Ela é o que deixamos de lado, ela é o resto de todos nós. 
Mas faz-lhe confusão ser assim tão inteligente. Olha de soslaio, de esguelha, voa parada no ar como se estivesse a ser perseguida, opta por uma rigidez de corpo em combate, aprecia as suas unhas-almofada que colam e descolam a seu bel-prazer. Quase civilizada, continua implacável e brava. E faz barulho e tortura. O mal que a domina faz nascer o desejo de pagar com o mesmo mal e a imaginação não pára. Ela não é de ação, é de reação. Quando pressente que as coisas lhe vão correr mal, tenta sair e fica voando encostada aos vidros. E quando não encontra a saída, ali fica quieta e serena e aproveita para ler um livro como uma verdadeira intelectual. Afinal, às vezes, as barreiras são apenas pretextos cómodos para não se transpor, pretextos ideais para se descansar e repensar estratégias. E uns minutos depois, sob um impulso inato, mais poderoso que todas as considerações do interesse, lança-se no ar a todo o vapor e ataca.
Esta vida são dois dias e, neste caso, são doze dias de vida, apenas. Isto se tudo lhe correr bem e se lhe faltar um esmagamento.

(encontro imediato de quarto grau entre um observador alucinado e uma mosca varejeira)

Mónica Costa
(quadro de Paula Rego)



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