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E foi neste estado paranóico que me deixei levar pelo rodopio

Aqui há uns anos, quando o meu gosto era mais refinado, encarava as festas de verão como algo fantástico. As luzes em pisca-pisca eram milhares de sóis dentro e fora de mim, os carrosséis atiravam-me ao ar com dignidade e as músicas psicadélicas, mais as roulottes de farturas gordurosas e açucaradas faziam as nossas delícias enquanto canalhada acneica. Tudo era sinónimo de completo êxtase. Marchava-se em passo solene para o local da romaria e desfilava-se de nariz no ar, inalando o mágico odor a pipocas. Havia sempre uma saída consentida até às tantas da manhã na companhia de vizinhos e amigos. Não havia um único detalhe que estragasse a alegria. Ia-se simplesmente para a festa porque era tradição, porque sim, de cabeça leve. Não havia a regra do pai nem a imposição da mãe, havia uma ausência completa de limites que instauravam a sensação de sermos livres sem o sermos. Havia festa e havia verão e isso chegava. Até parece mentira dito desta forma, mas a fotografia não mente e aquele que ali está sou eu, no meio daquela gente em festança. É tão simples assim e garanto que não havia mais ninguém tão feliz como eu, naquela altura. 
Num pestanejar, tudo desapareceu neste escuro de luzes. E mesmo estando eu, agora mesmo, cheio de saúde, de corpo maravilhosamente musculado e bronzeado pelo sol de Belize (…estoirei todas as minhas reservas financeiras para cumprir este desejo de verão…) e disposto a encetar a aventura neste carrossel diabólico, parece-me, de repente, ridículo estar aqui. Ainda olhei para trás e recuei um pouco, na esperança de ter o bom senso de não entrar aqui, ansiando que toda esta vontade não passasse de um delírio, mas todas as forças do universo convergiram no sentido de colocar este pé neste patamar de loucura e atirar-me para o carrossel mais radical de todos. Não havia o olhar reprovador da mãe que facilitaria a decisão. Agora, é-se livre sem o sermos porque a liberdade da escolha é a arte dos enganos.
Eu que estou habituado a tantas acrobacias, acho que vou enjoar ou que algo de muito mau me vai acontecer. Sei lá, imagino-me, rapidamente, com uma das mãos presas num dos manípulos que tenho de acionar para me prender a este assento decrépito ou pressinto uma desgraça que me pode lançar em tal rodopio que me obrigue a ficar de cabeça para baixo durante mais de dois minutos. E seria a morte do artista. Mas não! Nada vai acontecer! É festa e há verão! E isso deveria chegar. Eu sou optimista por natureza e apenas me sinto um pouco cansado, hoje. Portanto, sinto uma ligeira dor de cabeça que poderá, eventualmente, amenizar depois desta aventura no carrossel. 
E foi neste estado paranóico que me deixei levar pelo rodopio deste carrossel que nunca mais parou...




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