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Mensagens

sopro de vida

encosta o teu nariz ao meu e respira sente aqui tão perto a minha boca quase colada à tua e passam num segundo sem que nada se diga todas as sílabas possíveis que compõem a Palavra que é lufada de ar, sopro de vida. ( obra de Julião Sarmento)

verso primeiro

Não há verso como o primeiro – o da infância. Um dia de verão pelas sete da manhã e a promessa de chegar à praia o mais brevemente possível. Um carro que anda devagar demais e uma estrada tão longa que deixa qualquer um na loucura. E vai veloz! Mas, mesmo assim, é tal a ansiedade e a felicidade de chegar que parece nunca mais se efetiva aquele encontro mágico… Está o balde preparado, o fato de banho por baixo da roupa a pedir que se largue a camisola, está o carro já a cheirar a maresia. E salta a criança no banco! Abre-se a janela do carro à chegada e aspira-se todo aquele ar que é vida para dentro da gente! E é este o verso primeiro – o de sermos capazes de efetivar encontros mágicos! (foto de Sergio Larraín)

Efeito Wah Wah

 é quase sempre no mesmo tom entusiasmado que te perguntam das vibrantes conquistas as primeiras: com que idade perdeste o primeiro dente com que idade aprendeste a andar de bicicleta com que idade leste as primeiras letras com que idade inauguraste as inseguras braçadas com que idade fumaste o primeiro cigarro com que idade ensaiaste o teu primeiro beijo com que idade largaste a casa dos pais com que idade abriste a porta da tua casa com que idade conseguiste o teu primeiro sustento com que idade com que idade com que ansiedade e é na base destas perguntas constantes que vais acelerando tentando provar a todos que és capaz de mais e mais até que, um dia, te apercebes e, agora em tom espantado, perguntas porque deixam de perguntar e deixam de se interessar  pelas tuas novas conquistas as verdadeiras: com que idade já nem te perguntam a idade com que idade te olham surpreendidos para o que fazes acontecer com que idade descobres com entusiasmo que continuas a aprender, a perder, a ganha

Como eu gosto deste tempo assim- assim!

Como eu gosto deste tempo assim- assim que só confunde a gente.  É uma gracinha esta chuva miudinha que nos surpreende logo pela manhã. Ainda ontem um sol radiante de fazer acreditar que teremos, finalmente, direito a um verão com dignidade e, hoje, abre-se a janela e… chove… Eu sei que a sensatez fala mais alto e este cai-cai facilita quem tem de se resignar ao trabalho. São as forças da natureza a dizer-nos que mais vale que seja sem sol para que fiquemos mais conformados, mas… E é neste preciso momento que me lembro de uma frase que alguém que muito admiro disse «Há qualquer coisa na inação do seres humanos que deixa acontecer o divino»… como este chocolate quente que aconteceu nesta manhã de chuva que nunca teria acontecido numa tarde de sol a valer. E não é que o dia terminou em pôr do sol radiante!...  Como eu gosto deste tempo assim- assim!

Vão crescer! Vão crescer!

 Para a cova aberta se atiram as sementes caem elas, uma a uma no ventre da terra e ficam, ali, em silêncio profundo! (e bocas atónitas abrem-se à espera de desgraça) E assim secretas assim afundam e aguardam Elas, as sementes soterradas! Preenche-se a cova aberta de terra escura Calca-se, deixando apenas um último fio de luz… (tranquilizadas as gentes, cerra-se o portão da quinta à chave) Mas lá no fundo bem no fundo da terra naquela quinta fechada a sete chaves onde a noite fica como a única certeza Há festim! Planeiam… Estão a germinar… vão crescer! Vão crescer! Porque é mais densa a flor mais densa que a noite escura E, em breve, a alegria em vez da dor!

E subimos e planamos e vivemos aquilo que mais ninguém vê

 O que nos vale é que sempre nos encostamos a um muro, a um banco, a uma rocha, um ao outro E conversamos E nós acrescentando, vendo surgir o fogo lá ao longe o fogo que alteia a chama junto a um mar quase sempre inquieto mas vivo E conversamos E ficamos ali observando o horizonte E nós embevecidos com o olhar embaciado pela ternura de mais um dia que colecionamos E conversamos Eu pouco te tenho a dizer E tu pouco me dizes as nossas palavras são outras um toque de ombro, um toque de pés uma teia de luz, um sal, uma mão que se dá sentindo o fogo que alteia a alma Sobrevivemos E subimos e planamos e vivemos aquilo que mais ninguém vê

assobio em cadeia

e reparei no assobio de alguém que destilava felicidade sorri, guardei-o como quem guarda um tesouro e fiquei ali a assobiar também...

mas ainda bem que há mecanismos infalíveis que cortam todos estes fios:

 são tantos os fios os fios poderosos do tédio dos dias os fios invisíveis que nos prendem os fios que nos humilham, nos envergonham, nos tolhem os fios que nos impingem mas ainda bem que há mecanismos infalíveis que cortam todos estes fios: as fugas e aquilo que se adivinha precioso os nascimentos que nos emocionam,  as mortes que aceitamos como necessárias e as ressurreições inesperadas a novidade, o que se anuncia arrebatadamente as luas espantadas que surgem sem mais nem menos a defesa das urgências de agarrar um momento os lugares onde fomos felizes as viagens que ainda não fizemos as palavras como pontes que unem margens as decisões que fazem avançar o mundo a gratidão de viver mais um dia em liberdade (obra de Fabiana Zamuner in https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/719131/intervencao-artistica-traz-delicadeza-a-cidade)

há um florido alpendre e isso basta!

Um dia banal que se transforma. Porque, às vezes, é assim que acontece. Pensamos ao acordar: aqui está mais um dia em que tudo se repete. Nada muda. É o ter de ser! Uma vulgar quinta feira de trabalho à espera de ser sexta para que se aproxime o dia do descanso. Foi exatamente assim que pensou a Celeste. Mas, naquele dia, vinha de cravos na mão. Era dia de festa no local de trabalho e havia que presentear os clientes do seu restaurante. Foi assim recomendada pelo patrão. E conforme lhe disseram, assim obedeceu. E lá vinha ela de cravos na mão, tão vermelhos quanto a sua devoção. Quarenta anos de idade e muitos de serviço com certeza. Devia ser daquelas miúdas que começaram a trabalhar cedo para ajudar a família.  O caminho para lá foi certo, igual a tantos outros dias repetidos pela certeza do dia a dia. Só que, às vezes, ao virar da esquina podemos ser agradavelmente surpreendidos pelo que de melhor está por vir. A porta afinal estava fechada e não havia festa para ninguém. Ficaram os