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Mensagens

Mas eu insistia

  Eu lia e abstraía-me. Diziam-me para ler sem me explicar porquê. E o livro era tão difícil. Mas eu insistia. Olhava-o com cuidado, com vagar, com tempo, escolhendo o melhor lugar. E aos poucos, ía sentindo que o tempo parava e a luz surgia e, da confusão inicial das palavras, surgia uma ideia nítida e começava a compreender. As longas linhas fastidiosas e labirínticas transformavam-se em caminhos por onde outros tinham andado. Aumentava a curiosidade e também queria experimentar. O meu pensamento começava a organizar-se. Sentia a experiência dos outros que me avisavam. E de cada palavra transbordava a terra, o sol, a maresia. O silêncio e a calma. A paz e a vida. A guerra e a dor. Mas também a voz e a alegria. A música. A coragem dos que querem partilhar. E juntavam-se mais palavras, muitas palavras novas que, por serem percebidas, eram sentidas e, portanto, apaixonavam e prendiam.  E aquilo que agora vejo é aquilo que nunca tinha visto porque consigo enxergar sob novas perspetivas.

mão na mão

  força que liga e desliga uma mulher outra mulher um amparo mão na mão uma espécie de olho por olho dente por dente gestos de uns pelos outros que continuam a alastrar-se por dentro é esta a posição dos cacos e dos afetos

aqui nesta esplanada onde tudo é perfeito

 aqui nesta esplanada, tudo é perfeito  a tua fala ainda e o teu sorriso e uma chuva miudinha uma espécie de contrabando tudo a combinar e a constituir-se como mistério que dá substância à vida não há maior regalo do que este de estar aqui sentada ao lado destas palavras aqui nesta esplanada onde tudo é perfeito

Somos quase sempre a dúvida pernas de Homem, alma de Pássaro!

 Claro que é sempre para baixo que se caminha e a toda a velocidade! Voar é para cima. Somos uma espécie de Homens-Pássaros de voo, mas a pique! Cada vez mais cansados, mas com uma inabalável vontade de arrastar os corpos para fora do círculo da queda. Sim, admitamos! Todos temos uma aversão natural ao que é certo porque sabemos que é difícil caminhar sempre... E o nosso sentir natural é este Errando e errando até acertar o voo ou o passo. Aproveitar todos os dias para nos conhecermos melhor e continuarmos a ter a fome e a inquietude necessárias para reconhecer que não há voos certos há movimentos livres, momentos inesquecíveis! Sim, admitamos! Somos quase sempre a dúvida pernas de Homem, alma de Pássaro! E são já poucos os preparados para admitir que ficam os voos não as caminhadas. 

E o dia amanhece em paz.

 os desentendimentos eficazes são aqueles que são capazes de fazer, de forma divinal, as pazes num jeito violento e terno ao mesmo tempo uns rápidos de temperamento que culminam num entrelaçar lento de movimentos uns desentendimentos eficazes uns entendimentos que ninguém entende  e o dia amanhece em paz

faz-te primavera vestida de andorinha

 Há um verbo bom Criar! Como que uma voz pequenina que vem de dentro e diz Caminha! Refaz Dá a volta Imagina! E menina à solta faz-te primavera vestida  de andorinha.

Abro a saca e faço casa e assim se racha a dor

De lama faço alma. Com ramo construo amor. Abro a saca e faço casa e assim se racha a dor Enquanto umas palavras andam, outras decidem nadar  E não há ataque que eu acate, neste jogo de palavras porque sou louca, mastigo sílabas, refaço e desfaço-as. E foi assim que o amargo trocou o passo e aparece cedo o doce Da boca se faz cabo.  Das cordas saem cardos.  Do grito salta trigo.  De tanto uivar fica a tarde ruiva.  De ciosa faz-se coisa refeita.  E sabendo que não há medo que não me dome,  mas há sempre azar na palavra arrasar,  não há que ter receio das maldades porque ainda há palavras intactas como sebes que não se desmontam nem de trás para a frente nem da frente para trás.  E ainda outras que quase não se desfazem como sonhos não há volta que se lhe pegue… São estes altos e saltos, como a vida… são palavras em sobressalto que dão voltas com energia!

sorriso brando

É um «Gosto de ti!» Leve, ternurento, fácil de sentir, fácil de entrar e de pronunciar.  Um Gosto de ti! Assim simplesmente! É teimosia inocente  é o puro instante, é dar sem pretender receber.  Gostar de ti é o mesmo que querer dizer  que há coisas em ti que, em mim, não existem e que só são bonitas em ti e eu gosto, simplesmente.  Não quero que elas passem para mim, são tuas e eu aprecio-as, em ti, com orgulho.  Gostar de ti é saber exprimir a gratidão de transportares algo que me suaviza e me motiva para ser melhor.  Gostar de ti é gostar de mim nos meus pontos mais obscuros.  Gostar de ti é sorriso brando, complacente, cúmplice.  Gostar de ti é saber que estás sempre aí.  Gostar de ti é não te querer. Gostar de ti é compreender os teus silêncios e saber que, por vezes, nos lugares onde nos encontramos, é noite escura.  Gostar de ti é compreender as tuas palavras e saber que, muitas vezes, nos lugares onde nos encontramos, é manhã clara. Gostar de ti é não fingir que está tudo bem!

sinais dos tempos

 É esta a reinvenção: a do copo de plástico ou de papel do café devorado à porta, à pressa e de pé. num golo sôfrego de brilho baço. E dás por ti em impávido desembaraço a engolir o hábito da culpa e do cansaço. E, nesse fugaz instante, és obrigado a atravessar a estrada e a inaugurar um banco do jardim, aceitando que tudo pode ser recuperado, mas nada vai voltar a ser como dantes.