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Um dos rostos está de frente para uma árvore e o outro tenta acompanhar-lhe o movimento lento

Há um edifício imponente, três portas fechadas, de janelas esguias. É um edifício antigo, com boa reputação, habituado durante muito tempo a grandes movimentos. Fica bem no centro da cidade e, todos os dias, eu passava por ele. Por dentro, estava sempre cheio e, por fora, mais cheio ainda. Grande azáfama rodeava este edifício! Hoje está cinzento! Está a vida em suspenso. E há apenas dois rostos por aqui. 

Os dois rostos que aparecem, andam carregados que nem estas nuvens que prometem chuva. E os ramos das árvores parecem pontos de interrogação acompanhados de pontos de exclamação e vêm aos pares, mas sozinhos, cada um na sua, sem saber o que pontuar daqui para a frente. Um dos rostos está de frente para uma árvore e o outro tenta acompanhar-lhe o movimento lento que combina com o marulhar das folhas e com a música dos pássaros que têm conquistado o devido destaque nestes tempos. Nunca ouvi tanto chilrear! Os pássaros, ao contrário de nós, nunca confraternizaram tanto. E, neste jardim deserto, em frente deste edifício, a única pessoa que está comigo nesta rua gosta de silêncio e eu ando mole e tonto como um cão entediado pela correia que o impede de vaguear pelas esquinas. Ele costumava ser um sujeito caseiro, mas agora anda ainda mais ensimesmado. Eu costumava ser um sujeito de andar de rua, mas, normalmente, andava solitário por entre a gente. Ele, que hoje se levantou muito cedo, está à espera de resposta. Deve ser por isso que olha aquela árvore. Alguém nos colocou uma questão pertinente. Eu esqueci e nunca mais pensei nela, mas ele cisma há não sei quantos dias e não consegue chegar a uma resposta. E, de tanto se virar para aquela árvore perto deste edifício em silêncio, até a primavera já perdeu o tino. Frio e calor ao mesmo tempo, chuva e frio em esplendoroso arco íris nos céus… são tantos, tantos arcos, nunca tinha reparado em tantos! Os dias vão esmorecendo, parece que continuamos a correr numa carência de distrações. Sempre houve pessoas isoladas de um mundo que acontecia cá fora e sempre houve gente reservada para quem o todo social e ativo era fonte de stress. Mas eram-no por livre vontade e não eram muitos e forçados, como agora. 

Mas o mais incrível de tudo isto é que este edifício silencioso conseguiu juntar duas pessoas. Um a cismar, outro a esquecer. Impossível comunicação! Dois seres habituados a estar em isolamento quando o mundo vibrava cá fora e, agora, são seres de rua quando o mundo acontece dentro deste edifício parado. E não comunicam! E, embora eu aviste, deste ponto onde me encontro, um mar de gente dentro daquelas janelas, também ninguém responde à questão pertinente que agora se impõe. Têm medo de falar, de comunicar, de interagir. O edifício tem medo de se abrir. Guarda ressentimentos. Toda a gente parece querer recordar: quando foi a última vez que nos encontramos e onde foi? De que cor era a tua camisola? Nessa altura sorriste a bom sorrir ou atiraste à sorte um bom dia porque tinha de ser? Tens memórias boas ou más para guardar? Apresentaste o teu mais amarelo sorriso ou estavas tão absorvido pelos problemas da vida que nem reparaste em nada? Estava vento? Estava sol? Não sentiste?! As ruas tão cheias, eu tão farto nesta avenida de barulho tão insuportável! Pois é! Nunca imaginamos que podemos estar perante a última vez. Nunca imaginamos que as ruas pudessem ficar assim tão desertas, nem conseguíamos supor a falta de música da gente nos cafés. Se gritares agora, o teu grito ouvir-se á do outro lado da cidade em eco. É assustador. Só ouves a tua própria voz. 

E só agora me apercebi do problema que aflige o homem que olha aquela árvore. É que tudo o que foi escrevendo até hoje são histórias povoadas, cheias de gente. Mas ele nunca esteve lá. Páginas e páginas de conversas, de encontros, de ruídos, de vidas dos outros. Ele tem a página em branco. 

E a questão pertinente é esta: será este silêncio a mais difícil mudança de todos os tempos? É que temos tanto medo do silêncio, da falta de resposta do outro, das páginas em branco. Não haver reação, não haver interação! Saber que estão todos ali dentro, mas vivem em silêncio a apatia dos dias e sentam-se sem conversar…  

Ele pensa, finalmente, que precisa dos outros para viver. Ele que viveu grande parte da sua vida a fugir das gentes por medo, por timidez, por aversão, por se achar superior aos outros, talvez. Agora, percebeu que olhar as ruas desertas é incomodativo, perturbador. Decidiu, finalmente, acolher. Olha para mim e sorri! Deixa soltar finalmente o que andava cativo e pontua devidamente com um sincero ponto de exclamação! Eu também sorri e pontuei!







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