Avançar para o conteúdo principal

A caixa de Pandora

Eu conheço um pintor fantástico, cujo nome não revelo aqui por não lhe ter pedido autorização, que costuma, a par das imagens do resultado das suas obras, publicitar imagens de todo o contexto onde produz a sua arte. São fotos onde se enxerga as fases do processo de trabalho, os materiais utilizados nas diversas fases, o raio de sol que entra pela janela adentro e o gato que se espreguiça no sofá e que assiste feliz às movimentações do dono. E daquele ambiente surge um trabalho verdadeiro tão difícil e tão belo como um parto natural. E eu sei bem do que estou a falar porque já passei por dois fantásticos partos naturais. É tal e qual como dizia uma cronista que muito aprecio e cujo nome não revelo para que a curiosidade possa provocar uma pesquisa. Ela dizia que, para se criar algo de forma verdadeira, é preciso escolher um sítio vulnerável. E é de vulnerabilidades de que vos vou falar de seguida.
Quase que foi declarado estado de sítio há uns dias. Um pequeno caos! E estava eu numa das infindáveis filas de trânsito junto de um posto de gasolina, quando ouvi na rádio uma qualquer referência ao sacrifício e à esperança que o ajuda a suportar. Até parece que vinha a propósito. Em época pascal, o mais natural seria lembrar-me da figura de Jesus Cristo, mas aquele triste discurso, misturado com o cheiro do gasóleo, só me dava raiva, vontade de desfazer a aparelhagem. E a figura de Jesus era demasiadamente benevolente para o contexto. Foi nesse auge que me lembrei da máxima estoica do autocontrolo e firmeza no sentido de derrotar as emoções destrutivas. De repente, sorri, ao lembrar-me de um texto muito apropriado de uma escritora brasileira. Começava assim: «No rádio do posto de gasolina, tocou uma canção que falava de Prometeu. Do estoicismo de Prometeu. Tanto quanto sei, nas últimas aulas de história e geografia, Prometeu foi quase o deus que mais acreditou na humanidade. Quase. Há outro. Mas Prometeu, aquele malandro, roubou o fogo do chefão para levá-lo aos mortais.». Nunca Jesus Cristo se lembraria de tal façanha: roubar é feio! Mesmo que seja por um motivo de justiça. E, enquanto esperava no meio da fila, ia visualizando a figura divina em guerra aberta contra Zeus, suportada pelo seu irmão Epimeteu, espalhando poderes por todos os animais da Terra. Mas, por falta de capacidade de planificação rigorosa, lá ficava o bicho Homem, como sempre, com um problema entre mãos. Foi-lhe concedido atrapalhadamente o poder do Fogo e este era o princípio da nossa magnífica dependência. E era vê-lo a sofrer castigado e amarrado a uma rocha por toda a eternidade enquanto uma águia lhe destruía a figadeira! 
E eu ía organizando todos estes detalhes em esquema mental. Encaixei mais duas ou três ideias imediatamente guardadas à espera de melhor contexto onde pudessem ser trabalhadas. Coloquei-as numa caixa fechada no banco do automóvel e jurei que só a abriria quando encontrasse o sítio apropriado para o efeito. Um sítio vulnerável! 
Entretanto, chegou a minha vez! E lá me fui daquele posto de gasolina com o depósito cheio. Realmente, a esperança é sempre a última a morrer. Sentia-me detentora da caixa de Pandora!

Mónica Costa



Comentários