Avançar para o conteúdo principal

Um sítio onde todos estão em silêncio, paz dissimulada

Parece confuso, mas naquele lugarzinho era mesmo assim. Havia umas quantas mulherzinhas jovens que transpiravam decência e pudor. O politicamente correto impunha-lhes saias pelo joelho e um lenço carunchoso na cabeça. Viviam uma paz dissimulada. Olhavam-se, em jeito puritano, como se fossem denunciar, a qualquer momento, histórias vergonhosas que escondiam umas das outras. Mas (e ainda bem) havia também aquelas mulheres velhas de luvas de boxe ou cigarrilha em punho que eram demasiadamente ofensivas. Ofensivas porque havia um brilho nestas últimas, apesar do peso das rugas e do descair das peles. Elas tinham uma força descomunal e uma vontade, uma vontade de abalar toda uma geração pequenina e mole!! As suas casas estavam espantosamente pintadas de diferentes cores quentes e, dentro dessas casas, havia cristaleiras Luís XIV com espelhos já foscos da idade, mas  cheias de copinhos de bagaço que emborcavam mal a lua aparecia por ali. 
A mais nova das velhas. Era a líder! Usava uma bandolete e tinha óculos extremamente graduados. Mais parecia um ogre. Era gorducha e usava pantufas cor de rosa para contrariar a vizinhança tristonha, os vestidos eram muito verdes e os brincos enormes de prata pingavam das orelhas. Tinha sido bailarina e nunca pensou que acabaria os seus dias naquele sítio tão pequeno, mas a filha cismou que um lugarejo calmo seria o melhor para ela. Enganara-se redondamente!! Ali não havia quem percebesse o desafio das suas gargalhadas e das farpas que usava no seu discurso argumentativo, ninguém já lhe dirigia a palavra com medo da resposta. E, agora, restavam-lhe apenas mais quatro outras velhas curvadas de beleza interior, sorriso azul céu e olhar suave de orvalho. Era a força de viver que lhes permitia estarem acordadas até às quatro da manhã e levantarem-se para assistir ao nascer do sol.  Todos os sábados, havia um conjunto organizado de novas que iam à missa. Este grupo, em fila indiana, ia remoendo e maldizendo (não rezando) assim que o sino as chamava. E vão-se desgastando desta maneira, semana após semana, reduzindo a sua caminhada à insignificância de um ponto que leva ao outro ponto sem desvios. E, todos os sábados, havia o outro grupo das cinco que, a passo de muleta ou andarilho, desandavam para o outro lado do sítio. Tinham uma pequena quinta de ervas aromáticas onde idolatravam coentros e cebolinho. Praticavam Yoga entre ervilhas de cheiro e meditavam por entre as alfaces, de pezinhos ao léu em contacto direto com a terra abençoada. Deitavam-se na relava macia e ficavam olhando o céu com tanto deslumbramento quanto respeito.
A mais velha das novas. A líder! Descrição curta e eficaz. O cabelo: nunca tinha conhecido um desatino - usava laca. Os pés: direitos, encaixados numas sabrinas pretas lustrosas. Olhar: implacável. Poucas palavras! Riso zero, seriedade ao máximo! Figura: esguia e seca. Andar: apressado e fugidio de casa para a igreja. Representava o grupo dos contidos, dos somíticos e dos calculistas.
Havia também o presidente da Junta de Freguesia de Paços Moles, elo de ligação política e social entre as duas facções. Apresentava-se todos os dias, impreterivelmente às sete da manhã, na sede da Junta com o seu fato castanho e gravata cinza com cheiro a naftalina. Tinha um bigode fininho absurdo e andava sempre de mãos nos bolsos. E assustava com o seu olhar pisqueiro de quem neutraliza. Era apreciado pelas novas da aldeia. E depois havia o famoso grupo das Cinco que o achava algo psicopata. O seu olhar guardava segredo! Enquanto não se descobriam os segredos, iam vivendo cada dia como se fosse o último. Dançavam que nem raparigas na flor da idade e, completamente nuas, iam todas em liberdade absoluta a banhos, à Ribeira das Graças. E misturavam ternura a todos os momentinhos. 
Um dia, houve um incidente inesperado. Para deleite pessoal, o grupo das Cinco Velhas decidiu criar um grupo musical. A música suave que fizesse adormecer não podia fazer parte do repertório.  Tinha de ser algo potente que lhes permitisse abanar as muletas. Nem imaginam! As vozes foram-se aperfeiçoando e atraíram as atenções dos mais novos que se divertiam à brava com o ambiente hilariante. Havia erros e passos trocados, mas havia sobretudo uma operação de charme, uma organização meticulosa de bilhetes de entrada manuscritos e devidamente decorados, cocktails e entradinhas de fazer chorar qualquer um, havia chás e toalhinhas às bolinhas tão fofinhas que não combinavam com nada. A sala de baile enchia-se todos os dias. E assim era de inverno para aquecer como de verão para refrescar. Estas velhas eram peritas em criar momentos dos quais nunca iríamos sentir arrependimento de não terem sido. No entanto, começou a surgir uma onda de ciúme, revolta, inveja, arrogância, dor de cotovelo, tudo se transformava em veredicto. Qualquer uma das novas opinava, acrescentava, deturpava e, do pequeno, se fazia válido de repente. «É abatê-las, desterrá-las!» - diziam elas esganiçadamente atarantadas.
O presidente atreveu-se a falar com a já famosa Girl Old Band de maneira tão brusca que enalteceu os ânimos dos que ali se divertiam. Não adiantava! O presidente, abafadinho e atrapalhado, exigia que poderiam chegar a um consenso. Este era um sítio calmo e todo aquele frenesim vinha instaurar instabilidade. Era preciso afastá-las! 
E assim se foram dali…Um oh! de espanto de alguns e um ah! de malícia de muitos outros… Aqui se enterram sonhos! Um único sussurro as viu partir. E um único sussurro pode ser perturbador num sítio onde todos e tudo estão em silêncio, paz dissimulada…

Mónica Costa



Comentários