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Dar de caras com o inexplicável

Só vidas facilitadas, serenas, histórias sem um único sobressalto. Ou, então, histórias cómicas, hilariantes, vidas ridículas. Tantas vezes, histórias vazias e vidas preguiçosas.  Acreditando, acreditando apenas e em tudo o que se regista e publica. São os ganapos deste tempo, habituados ao jogo virtual, mas tão crus e nus perante a realidade.
Um largo, um jardim e um bando de rapazes bem parecidos, esguios, cortes de cabelo perfeitos, barbinhas rarefeitas, bigodinhos finos, rostos aquilinos, narizes enormes no meio.  Pescoços carregados de fios, fones e mãos abrilhantadas por iphones que os ligam ao mundo. Nem precisam de falar muito uns com os outros, apenas sorriem de quando em vez, comentam depressinha uma ou outra situação visualizada do youtube. Soletram meias palavras, trauteando músicas, misturam nomes de youtubers às suas conversas como se fossem seus irmãos ou amigos de longa data, Wuant, Windoh. E num mundo governado por facebooks, instagrams e twitters não há nada que escape a um registo digno de ser partilhado e visualizado vezes sem conta.
E ali estavam a ver passar o tempo. A tarde caia solitária e triste, não havia grande movimento na praça e as nuvens ameaçavam chuva. De repente, surge um ganapo com cerca de seis anos, gesticulando. Nenhum deles entendia tão bem a mudez do miúdo que pudesse fazer perceber o que tentava «dizer», apenas entenderam a sua aflição. Um dos rapazes gozou com a situação e lembrou-se:
- E se filmássemos o puto? Ganda cena!
- Tás marado, bro?!  - replicou um deles, mais consciente do que estava a acontecer.
Olhos tristes de petiz quase em choro, colocados no chão, pedindo ajuda. Ao topar que aquela cena não dava em nada, os rapazolas abandonaram o barco e foram-se embora. Zarparam cinco dos seis rapazes que ali se encontravam. Um ficou. Frente  a frente, rapaz e rapazito, um a precisar de ajuda e o outro a modos de dar uma mãozinha. 
- Se entendes o que te digo, faz sim com a cabeça!
E o petiz acenou, afirmativamente, com a cabeça. Sempre de olhos postos no chão.
- Tens mãe? Estás sozinho? Onde está a tua família? Perdeste-te?
E o rapazito puxou-lhe a manga da camisola e arrastou-o consigo. O rapaz compreendeu que algures por ali estaria a resposta daquele problema. A chuva começou a dar sinais tímidos e, dali a pouco, manifestou-se com furor. Correram ambos por duas ruas inteiras e, à quinta esquina, pararam ali mesmo. 
Um corpo no chão, caído. Era um corpo de mulher morta! O rapazito todo molhado atirou um rápido olhar ao seu novo companheiro. A sua vida tinha sido tão atribulada, mas agora terminaria ali com direito a testemunha, companheiro e cúmplice. A chuva cessara e ficavam apenas pedras molhadas num chão onde caiu aquele corpo morto. O rapazito atirava-se em choro e abraços para aquele corpo e, no exato momento em que o rapaz se preparava para pedir ajuda via telemóvel, algo de fantástico acontecia ali mesmo em frente aos seus olhos que tudo absorviam. O rapazito despediu-se. Nunca ninguém tinha assistido a nada na sua vida. Nunca tinha sido alvo de qualquer atenção. Nunca ninguém tinha reparado na sua apagada existência. Ele e a mãe agarrados e no ar, corpos suspensos, elevaram-se devagarinho e desapareceram. Assim, do nada. Os corpos haviam desaparecido ali mesmo à frente de olhos atónitos e pasmados. O corpo do rapaz que a tudo assistia estava estarrecido, petrificado. Ficara mudo!
E num mundo governado por facebooks, instagrams e twitters, este foi um não  acontecimento, um não alvo de um registo digno de ser partilhado e visualizado vezes sem conta. E o rapazola ficou ali simplesmente parado na chuva miudinha. Arrastou-se pela rua inteira, cismando no que tinha acontecido…
Nos dias seguintes, ainda meio baralhado, o rapaz esmerou-se em relatos detalhados e emocionados sobre o sucedido. Jurou por tudo o que era mais sagrado ter visto corpos a subir aos céus e a desaparecer, mas ninguém acreditava. Há coisas que contadas não acontecem porque simplesmente nada valem. Por vezes, damos de caras com o inexplicável. Somos nós o inexplicável!
- Tás marado, bro!! – insistiam os compinchas, visualizando histórias maradas no Youtube.

Mónica Costa


(fotografia surreal de Shawn Van Daele)




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