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esta beterraba bem podia

qual cor esta no balcão da minha cozinha qual vibrante cor a pulsar na minha mão porte altivo, porte terra esta beterraba bem podia ter chegado à categoria de obra d’arte disfarçada densa, carne rija, raíz talhada à minha medida força, sangue, mulher

o elefante na sala

diz querer passar despercebido diz estar farto de atenção diz sentir-se agradecido diz não gostar de exposição e não pretende mais levantar ondas não. nem sequer dar o dito por não dito está convicto. o melhor é o disfarce mas deixa a descoberto  os olhos (que é coisa óbvia) a tromba (que é coisa feia) ( Elefante na sala , Maurízio Catellan, Serralves, até janeiro 2026)

mas é – um poema de amor. há de ser sempre um poema de amor

Ainda bem que não morri de todas as vezes que quis morrer – que não saltei da ponte, nem enchi os pulsos de sangue nem me deitei à linha, lá longe. Ainda bem que não atei a corda à viga do tecto, nem comprei na farmácia, com receita fingida, uma dose de sono eterno.Ainda bem que tive medo: das facas, das alturas, mas sobretudo de não morrer completamente e ficar para aí – ainda mais perdida do que antes – a olhar sem ver.Ainda bem que o tecto foi sempre demasiado alto  e eu ridiculamente pequena para a morte. Se tivesse morrido de uma dessas vezes, não ouviria agora a tua voz a chamar-me, enquanto escrevo este poema, que pode não parecer – mas é – um poema de amor. Maria do Rosário Pedreira

um outono que surge precipitado

E realmente a praia está vazia nem um único assento indisponível... O mar a descoberto, tão escancarado! Um silêncio que insiste em demasia nada de aplausos ou apupos apenas este corpo de dias experimentado. Nada de palavras sem sentido ou sons ensaiados apenas eu e a verdade nesta hora de praia vazia. Apenas uns gestos imediatos e tão sinceros um vazio que continua a ser a minha praia num outono que surge precipitado.

o que a gente sente e não diz cresce dentro

força aquele trevo inquieto de três folhas para que sejam quatro que, sem pudor, fica com vontade de muito mais é quase copo cheio em iminente transbordar é saudade desmedida do querer ir nada temes, nada deves a não ser o desastre das tuas próprias pernas (o título é de Paulo Leminski)

alegro-me

seria um alegro-me no outro  pois a alegria entendida como um presente positivo  não requer sacrifício. Gonçalo M. Tavares

2: de quem escreve para quem lê

Se te parece ridícula esta minha tendência para a escrita, não leias. É muito simples. Pararás aqui mesmo neste ponto que se segue. Porque à terceira linha ou quarta só chega quem quer. E ao fim do texto só mesmo quem pode. Escrever é um batimento, um seguir atento, uns minutos de paz, de mesa redonda connosco próprios, uma arrumação. É uma esplanada como esta de onde escrevo mesmo agora, um cheiro a maresia, um recolher obrigatório. Não é negócio, é ócio.  Já reparaste alguma vez na sombra que se projeta na parede branca de uma tarde de verão? Já sentiste, sem protestar, a chuva miudinha que resolveu aparecer? Já atiraste uma semente à terra e esperaste vê-la aparecer por ali acima como quem se envaidece por estar a crescer?  Já evitaste pisar uma joaninha que se atravessa no teu caminho? Já sentiste alguma vez, a sério a minha mão na tua? Tudo isto eu vivo para o escrever e há que escrever tudo isto para que alguns (os mais distraídos principalmente) não se sintam ridículos ...

il giorno in cui uscì il sole

e neste dia nascia o dia tão diferente e eu crescia tão alto corpo rendido pelo fulgor da manhã e neste dia surgia o sol tão diferente tão perto e tanta luz e ía nas nuvens bem no meio delas contigo

Em todos os casos, vai crescendo o enigma.

Vou sentada adivinhando as histórias que cada um encerrará dentro do seu peito, do que os lábios nunca disseram, mas que os olhos deixam escapar. Um mínimo que se exalta por vezes faz-nos exaltar o mínimo em nós que reparamos nele. E agora mesmo me presto eu a este ensaio de adivinhação para o outro que se fixou em mim. E quase que adivinho que vai sentado, procurando também nos meus olhos o que deixo escapar. É esta a humanidade – a capacidade de nos olharmos uns aos outros, cada um com a luz que desenha a sua sombra. Em todos os casos, vai crescendo o enigma.