Se retrocedermos no tempo e nos fixarmos naqueles dias em que existíamos enquanto gente com apenas alguns centímetros, facilmente nos lembramos que, com essa altura, não pensávamos em nada de transcendente. Nada esperávamos porque tudo tínhamos de essencial. Vivíamos muito próximos do chão, mesmo pés no chão em contacto direto com a terra, absorvendo a energia mãe que era a prova das coisas que não víamos, mas sentíamos. Os dias não eram compridos nem curtos, eram dias, simplesmente. Os dias não eram bons nem maus, eram só dias à custa de brincadeiras. Nada de transcendental.
À medida que os centímetros nos foram acrescentando tamanho, os dias começam a ser contados e sentidos como compridos ou curtos. Na maioria dos casos, tornam-se curtos, demasiadamente curtos para tudo o que se quer fazer do que se vem descobrindo. Deve ser por isso que a noite começa a ganhar, nesta altura de narrativa, um fascínio peculiar porque acrescenta minutos ao dia, esperando-os compridos. E quem fala em minutos, fala nos centímetros que continuam a somar tamanho e a fazer-nos atirar o nariz para as alturas, para o infinito, para a transcendência. Pés no chão, cabeça no ar.
E, paulatinamente, a simplicidade é esquecida e substituída pela complexidade, a prova de que só começamos a ver coisas. E os dias passam a ser bons ou maus, na maioria das vezes, maus e à custa de muito trabalho. Conscientemente, esquecemos a felicidade das coisas que não vemos. E de repente, num difícil banco de jardim somos um isoladamente, somos cheios de medo de nós próprios. Suportamos os dias duros e penosos pela anulação de todas as hipóteses. Nada poderá dar certo (pensamos), nada esperando. E aguentamos. Não há dias suficientes, nem curtos nem compridos. Apenas camadas e camadas em forma de centímetros em cima de um corpo abatido. Começas a ter pena de ti e pena de mim e isso é o cúmulo da miserabilidade que nos prende uns aos outros. Transformamo-nos em pacientes, na aceção mais sofredora. Prendes-te à realidade que em nada é absurda e, como diz o outro, se a princípio a ideia não é absurda, então, não há esperança para ela.
E, um dia, no auge desta miserabilidade, vejo passar à minha frente, alguém cheio de flores nas mãos, um saco transparente a revelar a forma dos seus sonhos e exibindo um cartaz em letras garrafais «Precisa-se imaginação!». Sabes perfeitamente que aquele tempo em que vivíamos muito próximos do chão em contacto direto com a terra, absorvendo a energia mãe que era a prova das coisas que não vemos, já não volta mais. Mas, nesta nova etapa da narrativa, há um pedaço de novo. A sua presença faz nascer uma hipótese. Luta-se pelas hipóteses. E por cada hipótese levantada, há uma esperança! Há uma curva, uma espécie de mudança de direção. Vamos ultrapassando os limites que nos impusemos e somos capazes de nos superarmos, de nos deixarmos boquiabertos. Sabemos que somos parte de um todo, e cada um de nós é maior do que nós mesmos e melhor do que todos os objetos a que nos prendemos. Surge o mais difícil empreendimento de uma vida: a capacidade de nos conhecermos na essência. E aqui reside a verdadeira esperança, a que cresce no interior de nós mesmos e que possibilita a tal formulação de hipóteses. E, a certa altura, nascem hipóteses. Se convives contigo próprio há tantos anos, o mais natural é que te conheças. Conheces-te?
Se te conheces, estás disposto a assumir-te com todos os pontos fortes e fracos que te compõem. Será? Se não te conheces, esquece, não há esperança! Deixa-te ficar preso à realidade que em nada é absurda.
Se estás disposto a assumir a tua essência, então, há esperança! Porque o que te liga à vida é o que é esperado de ti por ti e não pelos outros. E essa é a verdadeira esperança, motor de liberdade. E enquanto há esperança, há vida, mesmo que pareça absurdo. Como diz o outro (Einstein), se a princípio a ideia é absurda, esse será sempre o motor da esperança.
(pintura de Banksy)
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