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Poderosa alfinetada que rebentou o balão...

Era assim que passava por entre a maioria das gentes que circulava naquelas ruas da cidade. Corpo de água, cabeça de ar. 
Havia algo de etéreo na sua figura esguia, de cabelo esguedelhado e claro. Babava-se constantemente e amparava a baba com um lenço algo sebento. Ficava assim estática, cheirando o vento com olhos de espanto, olhando a gente por dentro no meio da rua. Os dentes podres, as unhas pretas. Causava incómodo e, para tranquilidade de todos, chamavam-lhe a louca. Debaixo do braço carregava sempre uns galhos secos, levava lenha para onde não tinha fogo onde arder. Teimosa e malcriada, gritava, por vezes no meio daquela gente toda, e os gritos atroavam as esquinas e assustava quem passava limpinho. Parecia um turbilhão de águas salgadas e agrestes! As gentes pareciam formigas solenes em procissão, encurralados até aos ossos, mas ela… liberta de jugos. 
Um dia, cruzou-se com um galante de colarinhos lavados e exageradamente engravatado. Jeitosinho até às pontas dos pés! Ela pediu esmola e ele não deu. Claro! Jeitosinho assim nem reparou na desmazelada! No outro dia, cruzou-se novamente com o jeitosinho e pede esmola e ele olhou… e atirou esmola de cima para baixo. E ela disse, então, muito baixinho: «esse sapato não é para o teu pé, tens pé de quem anda descalço.» - sussurrava a desmazelada!! - «O teu andar não pertence ao sapato chique que apresentas!». Habituada a observar, observou.
E foi palavra sem pista, ele ficou a pensar e aquela desmazelada atirou a matar. Mulher misteriosa e intrometida! Ele de espinha direita, a tentar manter a superioridade de sujeito limpinho, sempre olhando de cima para baixo e ela, num relance de baixo para cima, desmontou-o! Poderosa alfinetada que rebentou o balão. É que aquela desmazelada tinha um sorriso potente e olhava para dentro da gente. O poder não estava nela. Era a fraqueza que estava nele. Ó mulher maldita que nos descompões! Instalou-se no indivíduo um incómodo, umas imagenzitas de sombra onde parecia reinar uma paz plena. Um mal estar que não sentia há muito e foi por dentro que se descoseu.  Mais valia - pensou - não ter passado naquela esquina, naquele dia. Ou sim! talvez fosse o equilíbrio para a toda a sua arrogância dos últimos anos. Tinha-se esquecido do seu lado frágil. E rondava agora, curiosamente, à procura daquela desmazelada. Só para entender o que tinha acontecido. Nunca mais apareceu a tal. Ele tentava escutar uma voz que vinha dali, mas não via nada nem ninguém e o vento assobiava! Ele tinha sido o escolhido naquele dia!  
Há seres que só existem assim invisíveis e que semeiam palavras transparentes e, se te tocarem no meio do seu caminho, limpam-te as teias de aranha. Distintamente! Desatam-te os nós! 
Agora, ele andava de colarinho limpo desapertado, sapatos confortavelmente nada chiques a dar corda a um passo admiravelmente solto. Percebera a sua fraqueza e apropriou-se dela com dignidade.

O sol lá se foi apagando no horizonte e até a folhagem estremeceu.

Mónica Costa
(pintura de René Magritte)



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