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A mostrar mensagens de dezembro, 2022

irónico

O senhor Joga Seguro sempre teve medo de voar. Fez a mala. Beijou os filhos, em jeito de despedida. E esperou. Uma vida inteira.  E nunca chegou a partir.  O avião caiu.  Aliviado, disse: «Ainda bem!» Irónico, não? Soube a chuva em dia de casamento, a dádiva pré-paga ou a bom conselho recusado. É que este senhor joga sempre pelo seguro e, portanto, já estava à espera. E esperou uma vida inteira. A vida tem a sua piada, um certo jeito sub-reptício, algo cobarde, de te ajudar quando tudo corre bem e de te afundar ainda mais quando tudo corre mal. Irónico, não? A vida tem a sua piada. Sabe, por vezes, a engarrafamento quando já estás atrasado. Parece que soa a placa do «É proibido fazer!» quando te preparas para o fazer. Sabe à sorte de teres dez mil colheres quando precisas apenas de uma faca. Sabe à angústia de encontrares, finalmente, o teu príncipe encantado com a sua encantadora companheira. Irónico, não? O senhor Joga Seguro sempre teve medo de voar. E nunca chegou a partir. Por uma

aqui em Boémia

quem és? de onde vens?  somos ou não somos inimigos? sou apenas um pobre rapaz já nem pretendo que me cresçam as asas já é tarde demais e é grande a perda já nada importa porque tal como facilmente tudo chega também muito facilmente tudo se vai é seguir em frente e encarar a verdade sou o teu companheiro ajudante uma espécie de Mefistófeles, tal mal compreendido mas, afinal, o único que entende a forma como todos somos tratados e te ajuda na fuga aqui em Boémia, correm mais rápidos os dias,  e talvez nem estejas de volta a esta hora amanhã… sabes, perfeitamente, que contamos ambos com a colaboração daquele que sabe escapar a qualquer tipo de situação Scaramouche!  Scaramouche!

vento que passa

Quantas estradas mais terão de ser percorridas? Quantos mares sobrevoados, ó branca pomba? Quantas balas mais terão de ser disparadas? Quantos anos mais existirás, ó mar,  com essa montanha ao teu lado? Quantas vezes mais conseguirás olhar sem fingir que não vês? Quantas vezes mais serás capaz de ouvir e ficar indiferente ao choro dos que estão do teu lado? Quantas mortes mais terão de acontecer? Quantas pessoas mais terão de sobreviver sem liberdade? A resposta, meu amigo, ….

amálgama feliz

e do incómodo que é vê-los dançar o do sapato fino e o do pé descalço numa amálgama feliz livres (a partir de um pormenor do fresco de Júlio Pomar, 1947, em Cinema Batalha, Porto)

na ponta do iceberg

na ponta do iceberg  fomos fugindo um do outro fomos fugindo de todos fomos fugindo de nós próprios  até ficarmos sozinhos  agarrados aos mortos e ao que já passou... não nos demos ao trabalho de arranjarmos um da nossa espécie  temos, agora,  como única bandeira uma insignificante folhita de oliveira  que nos priva de quase tudo de avançar, por exemplo não aprendemos a nadar e temos um dilúvio cá dentro e o raio da nau ganha raízes - das profundas com braços de torga que nos devora o cérebro e nos impede de ver o óbvio (trabalho artístico de Catarina Paulo)

numa qualquer praia - imensa e deserta

numa qualquer praia  - imensa e deserta mesmo que longe, mesmo que bela areal sossegado, alvura em onda foi-se o sol mas o corpo branco tremendo agarra-a se é que aprendeste a amar

então, me aviso

assim como eu que sempre escrevi e escrevo para regressar a mim de cada vez que há o perigo de um pequeno desvio então, me aviso

flor

É flor é nuvem é calor É bomba atómica é cravo é rumo É onda é átomo é árvore É asa é nódoa é rasgo é cor É ternura É sabor É coração a pulsar É querer um pouco mais de ti.