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A Matilha

O formigueiro acumulava sentimentos há muito resguardados numa gaveta poeirenta das memórias... MI espreita, sempre pronto a fustigar a insegurança de Andrómeda...
Ela sabe que, perante a nova fornada de Reclusos iria, mais uma vez, passar pelo escrutínio do passado. Enfim, já devia de estar habituada, mas a vida é mesmo assim,...experiências construídas por e com experiências.
Dentro do gabinete, olha para o seu cacto e sente-se tão só quanto ele...Não podia esquecer-se de o colocar no parapeito para apanhar um pouco de sol. Propósito que agenda  para depois, agora não lhe apetece.
Levanta-se, pega na resma de processos (o cartão ainda cheira a novo!) e dirige-se para a Sala da Matilha, nome que interiormente dá à sala onde trabalha com os  Reclusos.
Passa pelos Colaboradores com indiferença. Hoje não está para grandes afabilidades ... Alguns cumprimentam outros não. "Quero lá saber!"...
A Loucura sussurra "Ó moça, assim não vais fazer mais amizades...". Que se lixe!
Aproxima-se da Sala, e, o já conhecido burburinho vai aumentando. À porta, dois Verdes que lhe acenam num cumprimento silencioso. Entra e olha para a fruta fresca...Sabe que está  a ser avaliada. MI regozija-se, reconheceu a sensação de estômago contraído e de suor frio que se acumula nas axilas de Andrómeda.
Estão espalhados, em pequenos grupos, unidos por afinidades de primeira impressão. Há algo que têm em comum: o olhar desconfiado, zombeteiro e desafiador...
Como ela reconhece esta postura...
As cadeiras, dispostas em círculo, esperam, em silêncio,  que sejam ocupadas.
Neste meio-segundo de avaliação mútua, Andrómeda cai nas redes de MI...
... é ela que se encontra numa sala. A um canto está um grupo de Femina que a analisam e medem o seu potencial...Gaja estranha esta, e aqueles dentes são uma aberração!
Com tremores internos, avança, senta-se numa das cadeiras, coloca em cima da mesa o seu rádio e leitor de cassetes e coloca os auriculares. Ouve Gailhouse Rock, de Elvis,...Energia...ela precisa de energia para ganhar coragem para desafiar a Matilha.

As Femina vão-se aproximando, rodeando o local onde Andrómeda acabou de ficar hirta: alerta! perigo!
Os instintos primordiais contraem-lhe os músculos, secam-lhe a garganta e impulsionam a fuga...Não! Não me vou render!
Abre os olhos, encara cada uma das Femina que, surpreendidas pela reacção, pararam, esboça um esgar que expõe os dois dentes de ouro. Curiosamente, um pequeno raio de sol, incide neles, criando um efeito de quase divindade. Aleluia!...he,he,..., o espanto desenhado nas caras diz a Andrómeda que está a ganhar pontos.
A mais encorpada, talvez a Femina-Chefe, dirige-lhe a palavra. "Ó tu, o que estás a ouvir?". Andrómeda, com ar de superioridade, que não sente ("Mas o que interessa é o aparentar, certo?!", diz-lhe Loucura), retira lentamente os auriculares e faz sinal de que não entendeu.
Se achavam que ela era burra, então teria de jogar bem as suas cartas. A pergunta é repetida e Andrómeda, encorajada pela presença da Loucura, respira fundo e responde que está a ouvir música. A Matilha agita-se e aproxima-se..."A malta também gostava de ouvir música.". Era agora ou nunca: ceder significava perder; recusar significava medir forças.
MI sorri e regozija-se, nova encruzilhada para Andrómeda, ... maravilha, poder manipular as emoções da dentuças!! Desafia a coragem aparente de Andrómeda "Garota, desiste. Sabes bem que não estás à altura delas. Sempre estiveste sozinha. Sempre foste comida. Desta não te safas!"
Furiosa, com as faces enrubescidas e os dentes expostos, qual animal em luta, Andrómeda enfrenta MI e as Femina. "Querem ouvir música? Então vão ter de pagar!". O espanto é geral. Como é que a novata ousa desafiar a hierarquia estabelecida? Irá precisar de uma lição. Rugindo, elas aproximam-se e prestes a lançar-se sobre Andrómeda, estacam..."Deixem a miúda em paz!". Como uma dança bem ensaiada, abre-se um corredor de onde surge uma Femina baixinha, sem uma mão (em seu lugar apresenta um coto arredondado), de olhar duro, que enfrenta Andrómeda.
As duas encaram-se fixamente. Há muito que se diz naquela troca de olhares. O reconhecimento de algo em comum: a diferença!
A primeira sorri. A Matilha relaxa em sintonia. Já não há perigo!...
Em conjunto, ouvem Elvis e discutem que música  ouvir de seguida. O ambiente é amigável, inclusivo e a Loucura apraz-se com a vitória.
Andrómeda, esgotada pela tensão, sorri interiormente a MI..."Ganhei! Desta vez não me conseguiste deitar abaixo."
...o burburinho vai aumentando assim como a impaciência dos Reclusos. Estão saturados, querem regressar ao Recreio, apanhar ar, jogar, preguiçar ao sol, fumar o cigarrito...MI achincalha Andrómeda "E esta, esta batalha? Estás preparada? Tens a mania que os dominas. Entre eles, algum te vai superar e nem a tua dentuça se imporá, he,he!"...ah, que ódio a MI. Sempre a duvidar, a desafiar, a farpear,...
Ergue a cabeça e dá os bons dias aos Reclusos. A maioria não responde, nada de novo. Quem é aquela tipa? Ainda por cima é feia como a tua avó. Ei!...estás a insultar a minha avó? Já olhaste bem para a tua mãe? Vamos lá despachar esta merda.
Antes que os trocadilhos desbocados aumentem de tom, Andrómeda deixa cair os processos no chão. O barulho silencia as bocas... Andrómeda tem a sua atenção.
Olha fixamente para cada um dos novatos. O olhar é duro e conhecedor. Uns baixam a cabeça, outros desviam o olhar... restam dois que respondem com um endireitar de ombros, crescendo uns centímetros. O primeiro diagnóstico estava feito.
Andrómeda conseguiu destrinçar, por ora, os tipos com que lidaria nos próximos tempos. Calmamente explica que terão de trabalhar com ela se quisessem tirar partido da situação em que se encontram. Os dois resistentes, questionam. Não têm pachorra para aturar aquela tipa.
Simples!...sem o meu aval, nenhum de vocês, sairá da cela. As cartas estavam jogadas!
MI sente-se ofendido pela segurança mostrada por Andrómeda. A Loucura sente-se feliz pela corajosa imposição aos novatos.
A Sala da Matilha silenciou-se e as cadeiras estão ocupadas. Sentam-se de formas possíveis e impossíveis...Por agora é suficiente. Com o tempo e a convivência, Andrómeda sabe, as hierarquias serão estabelecidas, reforçadas e respeitadas.
Termina a primeira sessão e, satisfeitos por poderem sair, os novatos vão resmungando um "Até à próxima", "Adeus", esboçando acenos de cabeça ou de mãos. Nada fora do normal...Normal também a resistência dos dois que passam por ela de cabeça erguida. Andrómeda reconhece os sinais e sorri, afavelmente, com os dois dentes de ouro bem visíveis. Sabia que acabaria por conseguir trabalhar e  ajuda-los na sua estadia.
Regressa ao Gabinete 14 e pousa as pastas de cartão em cima da secretária. Sabe que vai ter problemas. Não com os Reclusos, com eles encontrará um caminho, mas com os Colaboradores. As lutas serão diárias e Andrómeda, suspirando, apela a Loucura que lhe dê forças para enfrentar o Sistema.
Olha para o cacto, pega nele e coloca-o no parapeito. Pronto!...senta-se em frente ao computador e, número a número, começa a preencher as fichas analíticas dos novos Reclusos.

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