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A mostrar mensagens de 2025

silêncio concertado

É andar de mãos dadas sem dizer nada Respirando apenas e centrando a atenção naquele par de mãos  que se acharam e acharão  entrelaçadas 

não há só gaivotas em terra

um reconhecimento simples, sentido. pessoas maravilhosas que tive oportunidade de conhecer no âmbito de um curso de poesia/ técnica vocal (que ainda não terminou… estamos apenas em pequena pausa). foi um mero acaso nos termos juntado. foi talvez a força da palavra que nos uniu. muitas horas juntos a desbravar textos, a explorar as potencialidades das nossas vozes. e tanto que descobrimos. nem fazíamos ideia de quanto potencial guardávamos. quantas maravilhas ainda tínhamos para explorar. este momento mágico veio na hora e na idade certa. tenho sentido imenso prazer em dar a conhecer a minha voz em várias situações. cada vez mais descontraída. cada vez mais segura. cada vez mais feliz. ganhei amigos bons. e quando um Homem se põe a pensar chega a uma conclusão. há uma idade na vida em que todos parecem desaparecer. parece ninguém ter tempo nem paciência para estar. parece que anda tudo ensimesmado e vazio. e depois há uns poucos que vão aparecendo devagarinho, mostrando-nos que não há s...

Queda

Subiu como quem sobe para cuidar com um regador na mão - o dia a brilhar. No topo do prédio, um jardim suspenso, um céu de cimento, um silêncio imenso. Entre vasos e folhas, não viu o sinal A curva do acaso, o gesto fatal. Pisou – sem saber – numa casca traidora O chão fugiu-lhe e a vida. Caiu. Caiu como caem os segredos no escuro Como caem as certezas no abismo mais duro. O vento a gritar o nome que já foi… Mas não! No meio do nada como se uma parede surgisse Como se o próprio destino intercedesse e ouvisse Ali, um brilho, memórias sem som: a infância, os risos, o tempo que é bom. Marcado por um contador Mostrou-lhe a vida: o amor e a dor: o primeiro choro, os passos, os erros, os olhos da mãe, os gestos sinceros. Compreendeu! Não era só um fim. Era o espelho da estrada. O instante em que a alma é pesada! Sem luta. Sem raiva. Nem um grito. Sorria no vazio. Era bonito. Aceitou. ( mais um trabalho de escrita criativa a partir de um pequeno filme da autoria de Iara Oliveira, 9ºC)

um mar de roupa

Que tal começar por uma personagem? Quero que se chame Renato. E quero que ajude o seu pai Alfredo a arrumar uma mala. Mas não será uma mala qualquer. Quero uma mala onde as coisas entrem sozinhas e se dobrem por si só e onde os cintos se mexam como serpentes. Não quero que a mala seja de viagem, das paradisíacas. Quero algo mais triste e sério, do género partida em trabalho. Quero uma família que não seja normal. Quero algo mais criativo e diferente. Quero estranhos que morem numa cidade pequena com um carro pequeno e velho. Mas quero uma mala. Uma mala que simbolize um momento. De pai para filho. Quero uma despedida. Esta mala abrir-se-á em ferida. Uma ferida em estrada. Quero também um mar de roupa que simbolize a confusão. Quero um pai que falecerá e deixará a família triste. Um pai que só pensou em trabalho para dar uma vida melhor ao Renato. (texto de Neuza Ferreira, aluna de 9º ano, desafio de escrita criativa lançado a partir do pequeno vídeo que acompanha este texto)

e nem por isso deu descanso

o domingo é, em última instância, uma desgraça principalmente depois das seis da tarde porque há um silêncio por todo o lado e nem por isso deu descanso parece que soa a nada ou a tudo o que não se quis ou que não se aproveitou ou que não se fez o domingo é, por excelência, uma indefinição tem o peso do dever à espreita, mas chamam-lhe dia de folga parece o fim de uma primeira temporada e pode muito bem ser só isto

ouve como range

ouve como range a porta           que não se fecha exibe o trinco aldrabado           que ninguém mais ousa almeja ser reserva de chegada     e murmura assim entre dentes        como quem quer e não quer o que é ser dentro ou ser fora                já nem sabe

E eu sei disto. Sei muito bem do que falo.

Quero falar-te no abraço de mãe.  Dura muito. Uma vida inteira. E vai-se moldando  em função do tamanho de um filho.  E o filho cresce e cresce e a mãe vai esticando os braços. Muito, muito.  Exageradamente abertos, sempre prontos a acolher.  O abraço de mãe não esgota, não se esgota. E eu sei disto. Sei muito bem do que falo.

primeiro, respira, depois, repara

Primeiro, respira. Nem que seja com a parte do pulmão que ainda acredita. Depois, repara: - o mundo não acaba. Nunca acaba. E a vida, essa sem-vergonha que se reinventa ensina-te que amarás de novo. Talvez de forma mais tímida Ou com o exagero dos que já perderam tudo. (Andrea Fernandes)

Não concluas que é sempre fria a água do balde.

Não suponhas que as formas nascem do olhar. Não questiones a razão da tua cor. Não te impressiones com muros iluminados. Não te esqueças que não há gritos com respostas. Não queiras quem caminhe ao teu lado indiferente. E nunca tentes emendar o que não tem conserto. Nunca leias um livro único uma única vez. Não tentes aprender equações repetindo. Nunca te arrependas do relâmpago duns lábios procurando outros lábios. E nunca pretendas decifrar mistérios. Não batas a nenhuma porta para matar a tua sede. Nem mates os anjos com beijos revoltados. Não duvides da inevitável solidão do tempo. Não leves tão a sério o desejo. E nunca esperes por uma palavra – di-la! Não concluas que é sempre fria a água do balde.

Guardo a rua que se afasta

Guardo a rua que se afasta e as pétalas que se agigantam quando semicerro o olhar Daqui deste alpendre, arranco pensamentos desta cadeira onde me baloiço na quase-noite  Há lírios matizados no peitoril da janela quebrada e azulejos perfeitamente desenhados A luz tremelica dentro do cubículo vejo-a cá de fora.  Guardo o grito que fere o entardecer  o rouco ladrar que estala ao longe  o último pio dum pássaro  que atenta em zig-zag o gato esquivo  Guardo a aranha que teia  o escaravelho que salta a escada  e a escada que conduz à poeira  que a chuva já amainou.  Guardo a púrpura tarde!  Há cheiro a buganvílias e jacintos uma tarde vaporizada… O chão está quente – dizem-no os meus pés descalços O vento suave – dizem-no os meus cabelos parados Daqui deste alpendre guardo o meu olhar que se estende para lá, muito para lá da tarde Respiro e guardo A paz que desce da espinha aos pés.

mas parte integrante do todo

Com a idade têm as madrugadas outro sabor são início de caminho para muito mais Com a idade aprendemos a encher o peito de ar como quem devora e gosta de aqui estar Com a idade ficam as coisas mais pequenas colam-se-nos à pele, arranjam morada E à medida que o tempo passa, mais o mar insiste Conseguimos desenhá-lo à sombra do que somos à luz do que queremos e amamos e somos quase sempre muito pouco comparados uma partícula minúscula perante a grandeza do que nos rodeia mas parte integrante do todo

foste tu quem me fez parar a meio

foste tu quem me fez parar a meio fiquei estanque mesmo a meio da rua a deter-me como que por feitiço  num pedaço de tronco a vê-lo ver para além do tronco as folhas, as flores ainda por nascer e agora eu própria cheiro a rosmaninho ou alecrim é algo que me deposita, ondula, fala por mim

umas empreendedoras madrugadeiras de asa preta

Nestes últimos tempos tenho acordado muito cedo, muito antes do cantar dos pássaros. Vou com um olho aberto, outro fechado, cabeleira em sobressalto e pijama em desalinho em direção à janela. Abro-a sorrateiramente e apanho-os, normalmente, sem pio.  Mas, hoje… sou surpreendida por umas empreendedoras madrugadeiras de asa preta. Nem imaginam quanto chilrear há neste alpendre! Mesmo aqui, no canto superior direito desta varanda do segundo esquerdo, descubro um ninho de andorinhas! E nada estão preocupadas com a barulheira que me espanta. Lá andam na sua azáfama, entrando e saindo dos ninhos em execução, desenfreadas e em grande alarido como quem prepara uma festa. Três ternurentas bolinhas pretas sobrevoando o meu pátio e vão chamando outras numa alegria tal que nem dão por mim. E assim me conseguem convencer de que vale a pena começar o dia a sorrir e encará-lo como dia de festa. Aos primeiros, embora tímidos, raios de sol, fico completamente rendida a esta luz que alimenta este ba...

o meu amor perfeito

hoje, o meu amor, pelos comboios obrigou-me a ir bem cedo  e fui hoje, o meu amor, mal lá cheguei acolheu-me e confidenciou-me cantam os pássaros quando vens fica o dia mais bonito quando ficas e sentes-te bem quando estou aqui também

trabalho árduo

O que me sustenta não é o trabalho árduo nem a papelada nem os sérios problemas da humanidade! O que me sustém é esta necessidade de não fazer nada! E ter a coragem de o dizer quando todos parecem tão atarefados! E andar por aí! Como quem respira. Como quem doma a cor, a temperatura, as texturas. Como quem adora as coisas vãs que não interessam a ninguém. E como é difícil convencer os demais que sou feliz assim…

mãe, para ti, são apenas os dias simulados

Neste sítio que não sabes onde nem quando nem porquê és a que já não pode ter nem estar e a quem nem vale ao menos o orgulho de poder supor que é. Cá fora, à tua volta, o mundo continua: o dia desponta, ora faz chuva ora faz sol fogem-nos os minutos neste dia-a- dia atarefado mas, para ti, são apenas dias simulados. Esta vida tão exata, tão calculada a régua e esquadro tão importante, tão cheia de números e nomes não passa, para ti, de um mundo efémero e imaterial.

Porque qualquer coisa se aligeira em nós. E aceita tudo mais nitidamente.

Já te conto, se quiseres ouvir quantas flores eu colhi nos anos da minha infância. Levava na altura um cesto que enchia de flores amarelas as do campo que mal prestam mas cujo aroma só delas enchia uma casa inteira. E, de súbito, o sol, só de as lembrar agora, banha este pátio de luz. ( o título é de Alberto Caeiro)

A Paz!... esse conceito abstrato

Fazer as pazes é termo bom e mais, muito mais, do que fazer a Paz A Paz!... esse conceito abstrato mas que só se concretiza quando em mim e em ti quando inicia por o que está mais à nossa mão. A minha paz, a tua paz, fazer as pazes feitas assim uma da outra

o que fomos e o que somos

Cada vez mais extremos disto e daquilo.  Ou se está pateticamente feliz ou exageradamente deprimido. Ou se está morto de cansaço pelo trabalho excessivo. Ou parados num tempo inútil. Ou nos (des) encontramos ou nos isolamos.  Ou vivemos no caos ou vivemos na exímia ordem.  Já não há lugar nem paciência. Ou é oito ou oitenta. Parece que só ambicionamos o excesso, a estrutura. Vivemos atafulhados de estatutos e de planos cumpridos ou por cumprir.  Idolatramos os pés bem assentes no chão, os horários certos. Ambicionamos a confiança, o definitivo, mas vivemos de pé atrás. Queremos ser os lugares certos, mas atormentados pelo desejo. Viramos o rosto para o chão com medo de pisarmos as nuvens.  Temos receio do novo, da doença, dos fins e do bicho papão. Invade-nos a apatia, o desconsolo, subsistem as horas incompletas.  Somos cada vez mais chumbo ou ferro ou dor. E menos flor, fogo, ar ou luz.  Somos cada vez mais almoços atrapalhados e relações de circunst...

nada realmente está perdido

Sozinhas ou acompanhadas.  Riem, choram, disparatam, fazem crochet. Cuidam-se e cuidam, compõem as flores nas jarras e as jarras na mesa e saem para comprar hortaliças, ouvem música e dançam.  Bebem chá e mexericam com as amigas ou vizinhas.  E mesmo que, com a idade, fiquem malucas O lema sempre será agitar.  Os homens nunca perceberão o que as mulheres podem.

mas o mar continua colado ao vidro da minha alma, embaciando o que escrevo com o seu ritmo matinal

 Ir até ao mar por becos e ruas por asfaltar seguir em frente e anotar quase todos os números das portas para ver que o que a conta dá. Virar à direita conforme dita o trajeto mais longo e continuar. E lá ao fundo, por entre duas paredes brancas três árvores vergadas. Daquelas que se acendem à primeira luz, mesmo em dias de tempestade. E é neste preciso momento que o antevês. Estás quase lá. É continuar. Segues em frente, divides a larga estrada em duas. Avanças. Abre-se o peito. E lá está o mar. Imperioso! É este caminhar para ti que me faz andar. ( o título é de Nuno Júdice)

ser mais

ser mais um dia para poder conseguir mais uma vez repetir  se preciso for gostar, sorrir encarar cada fim como um início outra vez

cidades

corremos nelas ou elas em nós? são os nossos olhos que rasgam a noite? ou é a noite qual onda que nos atravessa subitamente?

para que nos lembremos

Simões de Almeida aproveitou-lhe a cabeça e descobriu-lhe os ombros.  E perguntou à menina de sua mãe se a podia esculpir em nome da pátria.  A mãe concordou desde que a resguardassem. (mal ela sabia que a res publica vai tão maltratada... ) A rapariga chamada Hilda Puga (dizem, alguns, alentejana de gema) viveu 101 anos de forma brava e decidida enfrentou as mazelas necessárias para que se fizesse à vida e ainda hoje teima em aparecer, de quando em vez, para que nos lembremos que isto não pode ser a república das bananas.

E pesado, assim, ando inclinado como uma árvore

 Perguntei -lhe:  - O que guardas? E respondeu: o que me atormenta e o que atordoa o que atenta e me alenta, o que soa o que me fascina e o que ensina o que me levanta e o que ressoa em mim vives e vibras e ficas com o mais comovente como a alegria, pura e espontânea, o mais subtil como a atenção e a partilha, e o mais precioso como a companhia a tua mão, a tua mão  eu que sou poema guardo em mim,  há o sal e a água mais aquilo que se esgota há também o sol e o pão  mais o caminho que se gosta

a fazer lembrar o ofício de um dia por inteiro

não me apetece clara nem lavada indumentária nem sequer um outfit pensado quero uma ganga escura, esfiapada pelo uso a fazer lembrar o ofício de um dia por inteiro uma espécie de macacão que me cubra da cabeça aos pés a medir-me de alto a baixo tecido rijo que me proteja dia a dia do que insiste e subsiste e que aos poucos vá virando pele e seja a minha imagem de marca do que me arquiteta lua a lua, sol a sol

e não foi música má não – a do mar

não é música má não - a do mar principalmente quando a onda te bate no pé convidando à dança ensinando-te o vai e vem de tudo libertando-te pelo respirar veste-te e despe-te num ápice mas não é música má a do mar hoje foi assim o meu passeio contigo no meu pensamento e não foi música má não – a do mar

um buraco mais largo e mais fundo

Ainda não é bem o fim do mundo isto é apenas uns filhos da puta a abrir um buraco mais largo e mais fundo. José Carlos Barros

bom

e bebe-a se preciso  à vontade que persiste à alegria que existe às pessoas mais belas       retumbantes! capazes de me provar que estes meus sentimentos são bons porque me dizem que sim em vez de não!

que mais que desgraça é virtude

talvez vos console saber que estou só que nem uma haste seca no verão folha à solta na calçada inebriada pela cor um ping único em chapa gasta sorriso pouco breve apagado nestes tempos em que ficamos quase todos sós uns dos outros e até de nós talvez seja atitude honesta admitir-vos esta condição de mim como um só que se acostumou a tanta solitude que mais que desgraça é virtude (texto construído para representação, 2025)

Como?

Como dizer o cheiro da alfazema da urze dos beijos ou dos corpos Ou disso tudo junto? Só estando lá. (Manuel Resende)

manhã

ouve como soa vem ligeira e doce passa e deixa leve rasto  de paz

Portanto, pega na sacola e gira.

Em qualquer casa há uma cadeira. Ou um sofá. Perigosíssimo.   Sentar durante muito tempo cria cova. E quanto mais tempo se lhe dá assento, mais o rabo arredonda a cova e, um dia, buraco.  É preciso fazer da ira ou da impaciência (ou tão só do deambular e instantânea vontade do ir) o mote para não estar quieto. Os dadaístas defendiam um único momento na cadeira «significa pôr a vida em perigo» (li algures). Há que andar. Nem que seja em círculos à volta da cadeira. E a música é um bom aliado que dá que fazer à perna e ao braço. Faz reagir. E quanto mais alegre a tónica, mais se abana o capacete. Portanto, pega na sacola e gira.

todas as outras me assolam

Há uma palavra que nos guarda Carinho. Assim seja. Assim seja. Façamos por a resguardar. É a única que quero. Todas as outras me assolam.

Nada do que se espera transforma o que somos se não for isso

Nunca são as coisas mais simples que aparecem quando as esperamos. O que é mais simples, como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se encontra no curso previsível da vida. Porém, se nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos nos empurrou para fora do caminho habitual, então as coisas são outras. Nada do que se espera transforma o que somos se não for isso: um desvio no olhar; ou a mão que se demora no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios. Nuno Júdice

o corpo o rosto que emprestaste mais a voz que lhe deste

quando desce o pano, ficas tu apenas apagam-se as luzes, as cadeiras vazias restolho a teus pés,  o silêncio instalado desce o nervoso controlado às pernas tremem pelo entusiasmo depositado o corpo, o rosto que emprestaste mais a voz que lhe deste  ao poema és tu apenas  e a ceifa e mais a sensação da alegria que teima

A viagem está começada e nós na estrada

 Será que sabemos para onde vamos? (é que não sabemos exatamente de onde vimos…) (e percebemos tudo, mas apenas pela metade…) A viagem está começada e nós por dentro. Será que podemos desvendar o que sabemos? (uma vez que não se pode dizer tudo o que se quer…) Será que sabemos o que queremos? (uma vez que é tão certo o futuro…) (e não temos muito tempo para o entender…) A viagem está começada e nós por dentro.  Já vamos mais do que a meio e já nos sentimos no Paraíso. Será que o tempo está a nosso favor? (aqui vamos nós para sítio nenhum…) A viagem está começada e nós na estrada temos o mundo cá dentro, junta-te a nós e canta. Está tudo bem, está tudo bem, está tudo bem.

síncope

perda temporária do tónus postural adivinha-se restabelecimento em breve

Os olhos nem olham, não veem, apenas adivinham

Às seis, um ensaio de balanço e levanta-se a custo das minhas mãos  agarradas nas suas. Soergue-se em vitória como quem acaba de escalar o Everest. Falhou em quase tudo e, no entanto,  ri-se de espinha curvada e com todos os dentes em falha. Tão encolhida na tão larga camisola  que as carnes não enchem. Os olhos nem olham, não veem,  apenas adivinham a transição para outro estado onde o corpo não interessa para nada. ( foto com excerto do quadro de Victor Hernandez Castillo)

um pomar feito de ti, quem diria

 tu também não me sais dos dedos agarras-te à laranja e formas um pomar um pomar feito de ti, quem diria pensava que só servias para me lembrares da pequenez das minhas palavras um pomar, Tu. deleitemo-nos então em volta dos vários pomares de Tus que por aí existem (excerto de um poema de Cláudia R. Sampaio)

uma espécie de oração

a simplicidade de ficarmos com o instante das madrugadas o espanto de nos encantarmos com a música e seus malmequeres a paz de nos plantarmos de pés na terra e deixarmo-nos semente  e que por nós adentro rebente em flor a procura de saborearmos a beleza da certeza da derrota que nos instiga continuamente a recomeçar porque ainda há mais saída que cansaço

ninguém é sem cadastro

Na rua nada tem medida a não ser a que lhe quiseres dar.  E essa é a felicidade.  E há coisas que só têm a importância que lhe quiseres atribuir.  E essa é a liberdade.  Seja de dia ou de noite, ao princípio da manhã ou ao fim da tarde, é só saber esperar a luz certa que te acerte o olhar.  E essa é a felicidade.  Não as coisas interessantes por si só,  mas o interesse que nelas vês e que te torna livre de pensar nelas da maneira que quiseres e sem direito a manual de instruções.  É essa a liberdade.

não se apaguem as velas

preciso de um barco a roçar-me os olhos todas as manhãs para que não se apaguem as velas (Ângela Marques)

um e outro inseparáveis

O bem e o mal, pouco dele sabiam, porém tudo: quando o mal triunfa, o bem oculta-se; quando o bem se manifesta, o mal fica à espreita. Um e outro invencíveis, inseparáveis de uma vez para sempre. E por isso, na alegria – a angústia misturada, no desespero – sempre uma esperança calada. (Wislawa Szymborska)

grãos de areia

Há dias assim –  assim aéreos em que sei lá… se deve respirar livremente só porque sim, livre de indícios e de marcas  correndo a sorte de nos encontrarmos de contentes

o suficiente

Eu e a minha forma de viver complementamo-nos o suficiente para parecermos vistas de longe um todo (Ekaterina Yossifova)

vão-se os dedos e ficam os anéis

Hoje, durante a minha caminhada, dei de caras com esta casa.  Impôs-se-me ao ponto de me obrigar a suster a passada. Talvez tenha sido, a seu tempo, uma das casas mais bem compostas do sítio. Uma casa em pedra, rés-do-chão, primeiro andar. Bem localizada, muito perto do centro da cidade. Bom terreno e outrora cheia de gente nela que a enchia de esperanças. Se tivesse ficado apenas por uma olhadela superficial, teria concluído tratar-se de uma banal casa em ruínas. Só fachada. Nada de especial.  No entanto, desacelerei para observar. Topei uma ainda janela entreaberta, meia portada verde sulfato que permitiu enxergar o interior. Afinal, não era só fachada. Aquela casa era principalmente interior. Não a preto e branco, mas a cores primárias e secundárias em perfeita comunhão. Um quadro magnífico de estragos que o tempo impõe. Um interior húmido, sombrio e rico em destroços. A gente daquela casa desertara, morrera. Tudo o que ficou foi sendo alvo da ação implacável do tempo....

essa gente era uma espécie de solução

a partir do momento em que se predispõem a abrir cova para colocar semente uma a uma pacientemente devem esperar que cresça a vontade de ver nascer e principalmente que se alimentem para que renasça  a vontade de tornarem a semear (o título é de Konstantinos Kaváfis)

Quem não?

Não necessariamente acompanhados. Não propriamente sozinhos. Não completamente felizes. Não exatamente belos ou elegantes ou tão cheios de sorte na vida. Nunca um só disparo. Não num sítio qualquer. Não sem intenção. Preferencialmente no ângulo certo e com a iluminação adequada. Quase sempre na pose estudada. Imprescindível expressão facial: lábios franzidos e sobrancelha erguida, mãos nos bolsos ou na cintura ou nos cabelos. Aconselhável coluna alongada, postura ereta, confiante. Olhando para cima. Olhando para baixo. Olhando para o lado. Incrivelmente descontraídos perante o disparador remoto. Cinco. Quatro. Três. Dois. Um segundo. E guarda. E repara. E escolhe. E edita. E filtra. Aqui e agora. Selfie destes tempos. (foto retirada de   https://www.eutotal.com/poses-para-selfie/ )  

no tempo do outro senhor

Iam todos juntos para o tal retrato. Era assim a única pose do ano. Ele, guardião hirto e sério. Ela, ordeiramente cheia de crianças à volta, umas sentadas no seu colo, outras de pé, os mais velhos e rapazes já com direito à verticalidade. Ela, ar grave de quem se habituara a falar baixo e a pedir pouco. Tudo a preto e branco. A roupa tão preta, as faces e mãos tão brancas naquele cenário tão sombrio onde ninguém sorria, ninguém dava ares da sua graça. Era chapa batida. Todos iguais e para a posteridade. Todos iguais, apagados de brilho e de vida. Nunca se chegava a entender se era um retrato belo ou útil. E, depois de todo o ensaio fotográfico, seria o centro de uma qualquer sala de jantar, mesmo por cima da cristaleira. Entre os ricos, o retrato abrilhantaria uma sala maior, entre os pobres não passaria de um pequeno retrato num cubículo abençoado pela sagrada família.  Agora, quando nos detemos em tal retrato e decidimos retirar-lhe o vidro já baço e desencaixilhá-lo da apodreci...

só para que contemplemos o mar

encantam-me os de passo lento ou trôpegos ou distraídos os que caminham como quem dança os que se equilibram os que se equiparam a bichos luminosos os que vão, mas regressam só para que contemplemos o mar

se não sais de ti, não chegas a saber quem és

 Ela  à porta das decisões, agarrou o balde e a vassoura  e foi para que se pudesse aproximar de si Ele  à porta das petições, arranjou coragem sobraram-lhe pequenos gestos e algumas sombras e foi Valha-lhes ao menos a intenção de ir  mesmo não indo (na senda da Ilha Desconhecida ao jeito de Saramago)