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Ciclogénese explosiva

Francisca atravessou o jardim e escutava encantada, mas atónita: que ventos estes? Procurava incessantemente um objeto perdido. Havia um raio de sol que desenhava sombras no chão e tudo parecia perdido e espalhado naquela relva macia. Nisto, e de repente, olha para um determinado ponto de um canteiro e vê uma pequenina luz brilhando. Batia palmas. E um vento mais forte surgia. Recordações destas não eram de perder. Era uma medalhita, nada de prata, nada de ouro, latão apenas, mas rica e preciosa como tudo. Era a recordação da sua avó que tinha sido mãe, irmã, amiga, professora e mais tudo isso e tudo aquilo. Faz hoje três meses que morreu. E parece que está ali no jardim a olhar para ela e a repreendê-la: «Franciiiiisca!». Estes têm sido os piores meses da sua vida. E tudo por causa de quatro paredes ao alto avaliadas em alguns milhares. Estas quatro paredes ao alto com este jardim descuidado e soprado por estes ventos fortes.
Esta avó tinha sete netos com diferença de três anos entre cada um. Colocados em em escadinha pareciam um xilofone. A do meio, a Francisca, era a mais revireta, a mais teimosa, a mais indisciplinada. Era a que torcia o pescoço aos pitos, a que esburacava o jardim à procura de minhocas, era a que assustava os gatos e lhes dava com paus e punha toda a vizinhança em alvoroço pelo frenesim e correria que proporcionava ao bairro. Era a que andava descalça na terra e sujava a sala de lama, era a que andava em cuecas, à solta, para vergonha daquela avó que corria, sem forças já, atrás desta neta, com a saia numa mão e os chinelos noutra. Era uma miúda alegre e expansiva. Os outros netos iam e vinham por ali, faziam a visita dominical e saíam sem reação, alguns queriam ir-se embora imediatamente, pois a casa de uma velha não tinha nada de interessante.  Olhavam, com desprezo, esta garota que mais parecia o Mogli. A Francisca pedia à mãe para ficar ali toda a tarde, encostava –se à avó e, depois de tudo devastado, fazia-lhe massagens nas mãos e dizia, ao fim do dia, antes de se ir embora:
- Avozinha, hoje portei-me muito mal, mas, amanhã, dou-te sossego. Juro que me porto melhor amanhã, não te apoquentes!
A avó sorria com uma ternura!, olhando que a desfazia com beijos. 
No outro dia, havia tanta tropelia e chatice e a avó sempre cansada. A Francisca não conseguira, mais uma vez, cumprir a promessa, mas as massagens nas mãos eram de todos os dias e aquelas mãos pequenitas eram uma bênção dos céus. Os anos passaram, havia sempre aventuras para contar e preocupar mas, quase todas as tardes, a Francisca dedicava uns minutos de massagens àquela avó. As mesmas que lhe dedicou nos últimos dias de vida.
E esta casa tem um cheiro de avó que até aflige. E os ventos fortes sempre a açoitar a casa. Estava Francisca atordoada com a herança que lhe coubera. Não pelo valor da casa (como supunham os primos e outros familiares), mas pelo peso da responsabilidade de tomar um lugar de alguém, com esse alguém lá. Esta casa tinha sido doada por esta avó a esta neta. Deixara em testamento: «Para aquela que, nunca se tendo portado bem, esteve sempre do meu lado. Este lugar pertence-lhe.». 
E os familiares, famintos, diziam, entre dentes e com ar sanguinário, «Sonsinha! Andou sempre de volta da avó para lhe caçar a casa!!». 
E Francisca agarrada à medalha, único tesouro que lhe interessava. E os ventos sempre fortes, agora acompanhados de gotículas de água que caiam nos rostos de todos os familiares. Os ventos começaram a pontapear as portas e os vidros das janelas e tudo começava a ficar estilhaçado. Toda a casa tremia e o telhado despedaçou-se no ar. A relva do jardim voava e eram pedaços de verde estilhaçados por rajadas de água num ar revolvido de recordações. Era o Universo a reestabelecer o equilíbrio. Era a avó, qual mensageira, que aprendera com a neta a fazer tropelias...

Mónica Costa
(imagem retirada de http://sweetrandomscience.blogspot.com)



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