Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Um dos rostos está de frente para uma árvore e o outro tenta acompanhar-lhe o movimento lento

Há um edifício imponente, três portas fechadas, de janelas esguias. É um edifício antigo, com boa reputação, habituado durante muito tempo a grandes movimentos. Fica bem no centro da cidade e, todos os dias, eu passava por ele. Por dentro, estava sempre cheio e, por fora, mais cheio ainda. Grande azáfama rodeava este edifício! Hoje está cinzento! Está a vida em suspenso. E há apenas dois rostos por aqui.  Os dois rostos que aparecem, andam carregados que nem estas nuvens que prometem chuva. E os ramos das árvores parecem pontos de interrogação acompanhados de pontos de exclamação e vêm aos pares, mas sozinhos, cada um na sua, sem saber o que pontuar daqui para a frente. Um dos rostos está de frente para uma árvore e o outro tenta acompanhar-lhe o movimento lento que combina com o marulhar das folhas e com a música dos pássaros que têm conquistado o devido destaque nestes tempos. Nunca ouvi tanto chilrear! Os pássaros, ao contrário de nós, nunca confraternizaram tanto. E, neste jard...

mas é – um poema de amor. há de ser sempre um poema de amor

Ainda bem que não morri de todas as vezes que quis morrer – que não saltei da ponte, nem enchi os pulsos de sangue nem me deitei à linha, lá longe. Ainda bem que não atei a corda à viga do tecto, nem comprei na farmácia, com receita fingida, uma dose de sono eterno.Ainda bem que tive medo: das facas, das alturas, mas sobretudo de não morrer completamente e ficar para aí – ainda mais perdida do que antes – a olhar sem ver.Ainda bem que o tecto foi sempre demasiado alto  e eu ridiculamente pequena para a morte. Se tivesse morrido de uma dessas vezes, não ouviria agora a tua voz a chamar-me, enquanto escrevo este poema, que pode não parecer – mas é – um poema de amor. Maria do Rosário Pedreira

um outono que surge precipitado

E realmente a praia está vazia nem um único assento indisponível... O mar a descoberto, tão escancarado! Um silêncio que insiste em demasia nada de aplausos ou apupos apenas este corpo de dias experimentado. Nada de palavras sem sentido ou sons ensaiados apenas eu e a verdade nesta hora de praia vazia. Apenas uns gestos imediatos e tão sinceros um vazio que continua a ser a minha praia num outono que surge precipitado.

o que a gente sente e não diz cresce dentro

força aquele trevo inquieto de três folhas para que sejam quatro que, sem pudor, fica com vontade de muito mais é quase copo cheio em iminente transbordar é saudade desmedida do querer ir nada temes, nada deves a não ser o desastre das tuas próprias pernas (o título é de Paulo Leminski)

alegro-me

seria um alegro-me no outro  pois a alegria entendida como um presente positivo  não requer sacrifício. Gonçalo M. Tavares

2: de quem escreve para quem lê

Se te parece ridícula esta minha tendência para a escrita, não leias. É muito simples. Pararás aqui mesmo neste ponto que se segue. Porque à terceira linha ou quarta só chega quem quer. E ao fim do texto só mesmo quem pode. Escrever é um batimento, um seguir atento, uns minutos de paz, de mesa redonda connosco próprios, uma arrumação. É uma esplanada como esta de onde escrevo mesmo agora, um cheiro a maresia, um recolher obrigatório. Não é negócio, é ócio.  Já reparaste alguma vez na sombra que se projeta na parede branca de uma tarde de verão? Já sentiste, sem protestar, a chuva miudinha que resolveu aparecer? Já atiraste uma semente à terra e esperaste vê-la aparecer por ali acima como quem se envaidece por estar a crescer?  Já evitaste pisar uma joaninha que se atravessa no teu caminho? Já sentiste alguma vez, a sério a minha mão na tua? Tudo isto eu vivo para o escrever e há que escrever tudo isto para que alguns (os mais distraídos principalmente) não se sintam ridículos ...

il giorno in cui uscì il sole

e neste dia nascia o dia tão diferente e eu crescia tão alto corpo rendido pelo fulgor da manhã e neste dia surgia o sol tão diferente tão perto e tanta luz e ía nas nuvens bem no meio delas contigo

Em todos os casos, vai crescendo o enigma.

Vou sentada adivinhando as histórias que cada um encerrará dentro do seu peito, do que os lábios nunca disseram, mas que os olhos deixam escapar. Um mínimo que se exalta por vezes faz-nos exaltar o mínimo em nós que reparamos nele. E agora mesmo me presto eu a este ensaio de adivinhação para o outro que se fixou em mim. E quase que adivinho que vai sentado, procurando também nos meus olhos o que deixo escapar. É esta a humanidade – a capacidade de nos olharmos uns aos outros, cada um com a luz que desenha a sua sombra. Em todos os casos, vai crescendo o enigma. 

prolongo-me

chego ao mar não em morada mas em possibilidade de começo peço licença ao entrar. entro devagar. gosto de hesitar primeiro preparo-me no átrio e respiro prolongo-me como quem ainda não descobriu